“a vida é a
passagem do espírito pela matéria”
Por razões tão difusas que nem as consigo verbalizar,
tenho a crença de que em agosto acontecem, todos os anos, calamidades e
tragédias. E lembro, para me justificar, desde logo, o incêndio no Chiado, (e
tantos outros pelo país fora) mas, também, inúmeros outros factos, como
acidentes graves e mortes, anunciadas ou não. Possivelmente é o ritmo de vida
que, mais lento nesse mês, me permite olhar detidamente, então, para o “mundo
da vida”, pois durante o ano é a política de mercearia que me obriga a consumir
sempre que oiço os media a vender
notícias que me ocupam e preocupam. É, na verdade, uma arte a do mensageiro (media) que nos leva a consumir tanta
inútil obscenidade! E, a propósito, aqui deixo uma sugestão a respeito dos
fogos: que as televisões acordem em se interditar de dar aos espetadores a
mínima imagem de fogos florestais. Já todos sabemos, há muito, que o país está
a arder e, com chamas nas televisões a toda a hora, haverá muitos incendiários
a sentir-se espevitados para mais uma ignição.
Adiante.
Sensibilizou-me, nos dias mais recentes, este ano, o
óbito de Jacques Vergès. Também o de Urbano Tavares Rodrigues e o de António
Borges. Sem angústias ou medos – “a vida é a passagem do espírito pela matéria”
(Fernando Pessoa) sempre a caminho do retorno à Natureza – olhei apenas para o
que representaram para mim estes homens que, mais ou menos, conheci em vida.
O que, no transe, é de relevar, não passa por lembra-los
numa elogiosa biografia ou hagiografia, mas focar-me nos valores pelos quais os
referenciei um dia, os acompanhei depois, e não os esquecerei jamais. Não que
me identifique passivamente com os seus valores, mas porque, sobretudo, os
deles confrontaram-se com os meus, porventura na busca intemporal da verdade.
Jacques Vergès, que faleceu em Paris no passado dia 15
de agosto, foi um advogado que ficou ligado a causas apocalípticas,
nomeadamente ao defender alguns ditos grandes criminosos, tais como Klaus
Barbie, conhecido criminoso nazi ou Pol Pot, líder dos Khmers Vermelhos no
Cambodja. Advogado, como ele, confesso que sempre me inquietou na minha vida
profissional ter de defender situações consideradas, à partida, escabrosas. De
resto tive, muitas vezes de responder à fatídica pergunta: “E tu defendeste
esse criminoso?” Ancorei-me sempre numa frase do António José Saraiva, Filhos
de Nepturno: “Cada homem é um deus aprisionado num corpo”. E, assim, posso
afirmar que defendi muitas vezes o Homem que vestia de criminoso. Como homem
(como eu) sujeito a errar e com direito à sua verdade e ao eventual
arrependimento. Sei, também, que outros que não defendi, grandes criminosos,
andam por aí de Ferrari, frequentam os mais caros restaurantes e continuam no
palco político e social. Mas deles não se fala…
Vergés foi ousado mas, sobretudo, terá percebido que
“há mais coisas no céu e na terra” do que alguns pensam.
Urbano Tavares Rodrigues, um “malvado” comunista,
deu-me longas horas de prazer através da leitura das suas obras. Nelas
encontrei a fraternidade simples que só os escolhidos sabem cultivar. Escreveu
sobre todos os homens e sobre o Homem todo. De ontem, de hoje, de amanhã.
António Borges, falecido em Lisboa no dia 25 de agosto
representa um caso diferente – aparentemente diferente – nos escaninhos da
transitoriedade humana. Desde que, um dia, no ano de 2005, me confrontei com
ele num debate, num hotel do Porto, em tempos de uma ilusão politico-partidária
que o parecia motivar, fiquei alerta para as consequências de um certo
liberalismo desgarrado da realidade portuguesa. Muito longe do seu ideário,
julgo que o que mais me levou a admirá-lo foi o seu permanente combate em prol
das suas ideias. Ele julgava-as justas e por elas lutou sempre, até ao fim. Só
por isso me curvo perante a sua memória.
A vida continua. Os exemplos não se esquecem.
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