sexta-feira, 16 de dezembro de 2011

O FUTURO COMEÇA HOJE

A crise que o mundo é uma crise da humanidade que não consegue humanizar-se.


Pouco sabemos, na verdade e com inteira verdade, sobre o que se passa neste mundo líquido em que se traduz o nosso tempo. A distância entre a consciencialização do sentido e significado dos sucessivos eventos e estes existe com crescente e dramática dimensão.


Só percebemos, geralmente, o que vai na espuma dos dias e, daí, a dificuldade em pensar para além do presente. Mas tal nunca foi, talvez, tão necessário como hoje.


Na verdade, interrogamo-nos sobre problemas ligados à saúde (taxas moderadoras, ou outros) e dos políticos e governantes vem uma resposta assente apenas na tabuada; queremos saber do abono de família ou da pensão social e lá vem outra vez a tabuada; os desempregados procuram trabalho e, de novo, a resposta vem da tabuada. E este rosário continuaria sem fim neste país exangue com um Estado a caminhar, a passos largos, para se tornar um Estado falhado e, muitos de nós, meros servos da finança e dos mercados financeiros.


Ninguém, na classe dirigente, política ou não, está a pensar e a decidir o que Portugal será daqui a 10, 20 ou 50 anos. Mas isso é absolutamente necessário se não aceitarmos que as forças do mercado assumam, no seu interesse, a soberania escassa que ainda temos. Se nada for idealizado, planeado, plantado, então é certo que o descalabro continuará até às cinzas e só restará, de um lado, a fortuna extrema de poucos e, do outro, a miséria total de quase todos.


É preciso começar a escrever a história do futuro.


Estamos a virar uma página da história e, porventura, sem disso termos consciência, a ser agentes de transformações socretais de onde há-de surgir uma nova sociedade. Mas o que vai mudando, por vezes sem o contextualizarmos, exprime-se e é marcado por sacrifícios, sofrimento e lágrimas morais e materiais. O tempo do fácil conforto, do consumo ilimitado, das ideias feitas, dos dogmas eternos, da certeza e segurança, de negócios fáceis, de trabalho garantido, de ociosidade paga já acabou e, provavelmente, não mais voltará. Não terá sentido, pois, mesmo neste contexto, que as nossas esperanças, dilaceradas pela dúvida, pelo individualismo e pelo negativismo, não busquem o conforto das grandes certezas.


A crise que o mundo – e não só o nosso país atravessa – é uma crise da humanidade que não consegue humanizar-se.


Apesar de tudo, actualmente, se resumir à tabuada – das imposições da “Troika” à insensibilidade humanista do governo – nós pudemos acender uma luz ao fundo de um túnel diferente, porém, daquele, vertical, para que certos políticos apontam e nos querem levar.


Já não basta, porém, denunciar. Agora é urgente enunciar e abrir outros caminhos, avançar por outros sítios.


Não vale a pena continuar a martelar-se que tudo é urgente. É preciso saber, já, começar e dar os primeiros passos no sentido de mudar de vida e criar um mundo diferente.


As possibilidades não se encontrarão quando todo o Estado estiver desmantelado, nas mãos dos privados, nacionais ou estrangeiros. Temos de encontrar políticos, governantes ou não, que saibam esclarecidamente que não há reformas políticas sem, antes, haver reforma do pensamento político. A tecnocracia é um conjunto de ferramentas que não vale nada, nem serve para nada se não for guiada pela ideologia, pelo pensamento político oportuno e sagaz.


A maior crise deste tempo é uma crise de pensamento e de valores com sentido para além da conjuntura actual.

terça-feira, 6 de dezembro de 2011

DESCULPEM

As crises deste tempo, nas suas múltiplas manifestações, pretendem, afinal proceder infamemente e sobretudo a uma outra distribuição de riqueza.

Não ignoro que já foi dito e redito que se propaga na Europa – e, em geral, no mundo, ainda que subrepticiamente – uma luta de criptopoderes, não eleitos, contra o ideal democrático e para benefício exclusivo de interesses financeiros e da nomenclatura que os sustenta e, por eles, é sustentada. Desculpem que insista no tema, pois.


A barbárie está às portas, porventura já instalada mesmo, na, dita, civilização ocidental e nem precisa de um qualquer “Cavalo de Tróia”. É olhar a História com olhos de ver e não focalizar a reflexão, apenas, no hiato dos últimos 50 anos… A União Europeia é já pasto de chamas e o fogo promete crescer.

Não é o momento, este, porém, de problematizar a natureza humana, ou seja, se a sociabilidade do Homem é uma tendência natural e originária ou decorrente da sua evolução. As respostas seriam várias mas, entre muitas, talvez mereça particular atenção, nestes tempos de crise, o pensamento de Hobbes: em estado de natureza o Homem é mau (homo himini lupus) e só a vida em sociedade pode remediar tal maldade natural. E, acrescento por minha conta e risco, a sociedade que destrói a família, que derruba as protecções de quem trabalha, que ignora a solidariedade, que idolatra o egoísmo e o individualismo, o consumismo e se mercantiliza até à exaustão e tudo submete ao livre jogo dos mercados, nunca poderá trazer ao Homem (e ele também a construiu) os instrumentos para remediar essa maldade.


É muito difícil ser um homem bom numa sociedade que é má.

As crises deste tempo, nas suas múltiplas manifestações, pretendem, afinal – porque provocadas pelos homens – proceder infamemente e sobretudo a uma outra distribuição de riqueza. Prova-o o facto, já incontornável, de, em países como Portugal, ser crescente a desigualdade entre os mais ricos e os mais pobres. E o mesmo se verifica por todo o mundo onde os Estados perdem a soberania e os cidadãos a dignidade.


Não sei onde vai parar esta sociedade de risco e que caminhos novos são possíveis através de uma mudança do actual paradigma. Já estou convencido, porém, que nada será amanhã como é hoje e que só os homens livres – da fome, da angústia, da doença, da ignorância e de tudo o mais que apouca a humanidade - poderão contribuir para que algo mude, sem que tudo fique na mesma.


Dito isto, pego no recente ataque de hackers, ou piratas informáticos, a computadores do Ministério da Administração Interna de que veio a resultar a divulgação no espaço público de dados pessoais de mais de uma centena de agentes de autoridade. É obvio que repudio tal acção contra o Estado e as causas mesquinhas que tal determinaram. Mas não quero ficar no espaço de conforto que habitualmente caracteriza os cobardes e, por isso, retiro aqui o que de bom pode ter uma má acção.


E se esses “técnicos” – porventura a sociedade civil em geral – se tivessem empenhado em interceptar os computadores dos Duartes Lima, Dias Loureiro, Oliveiras e Costa e tantos outros! quando eles, à custa de todos nós (então, hoje e no futuro), fizeram fortunas incompreensíveis, será que as coisas teriam chegado onde chegaram?


Não se trata de um convite a práticas ilegais, mesmo que seja para combater outras, ainda mais ilegais. Mas acredito que a nossa sociedade seria mais justa e solidária e a lei mais eficaz se fossem arrombadas as fronteiras de tantos segredos impostos por lei (sigilo bancário, fiscal, de justiça…) e todos pudéssemos saber como nascem e medram certas fortunas: de políticos, de empresários, de profissionais liberais, sei lá que mais.


A sociedade civil tem, neste âmbito, uma força de que não tem ainda consciência. E estou certo de que se não agir, não será pelos meios processuais comuns (civis ou criminais) que a corrupção acabará e a Justiça triunfará.


Infelizmente.

quinta-feira, 27 de outubro de 2011

QUANDO A CRISE SE AGUDIZA

Os portugueses têm de reagir, de se indignar, de encontrar soluções para sairmos deste inferno.

Até o sol benfazejo, neste tempo de angústias, nos doía. Agora que o clima certo voltou, há, porém, que aprender a viver sob um céu de chumbo em toda a complexidade que a imagem terá para cada um de nós.

Todo o mundo é feito de mudança. Por vezes, mesmo, por meios revolucionários. Alguém já pensou que é isso que poderá estar a gerar-se entre nós e na Europa?.

O medo voltou à cidade e, qual ave de rapina, despedaça-nos. Mas terá inevitavelmente que ir por aí o nosso futuro? Esta questão, que há muito atormenta os nossos espíritos, voltou, há dias, com intensidade a colocar-se-me quando soube que, no Luxemburgo, vai acabar, pura e simplesmente, a taxa moderadora (que é de 2,5 €) no Serviço Nacional de Saúde, bem como cessará uma taxa de crise em vigor desde há algum tempo…

Neste nosso cantinho o pensamento político parece ter parado no tempo e a sociedade civil algures em parte incerta. Os intelectuais, especialmente, parece que já se demitiram do seu dever cívico e, tirando os economistas, que estiveram no itinerário da crise desde o seu início, a acompanham com os mais anedóticos argumentos e nunca a saberão resolver – não tomam posição, não exprimem a sua indignação, não afirmaram um pensamento para sairmos desta situação grave em que nos encontramos.

Estão, nos seus castelos de marfim, a “ver a banda passar”, completamente divorciados da difícil vida dos portugueses e, a sociedade civil, nas suas múltiplas variedades, não parece, senão em pequenas franjas, ter ainda alento para reagir.

Ora o que está a acontecer exige a implicação profunda das elites e de todos os cidadãos, no pensamento e na acção. Às vezes até parece que nos meteram, como a um sapo se faz, numa caldeira de água fria que, a pouco e pouco vai avançando até ferver e, aí, já não há vida.

Os portugueses têm de reagir, de se indignar, de encontrar soluções para sairmos deste inferno. Hoje está tudo, de novo, em causa, não há direitos adquiridos, não há emprego para a vida, não há senão riscos em tudo o que somos e fazemos.

Revisite-se a história, do país e do mundo, sobretudo da Europa, e não nos iludamos por termos vivido sessenta anos recentes de paz. As raízes da guerra, porventura em outros moldes, não foram exterminadas e ninguém sabe quais são actualmente as ambições dos que, nesses tempos, as desencadearam. É que nem só com tanques se conquistam os povos e erigem impérios. Hoje é a finança gananciosa o outro nome das armas de destruição

Urgem análises globais e feitas de vários sítios, alguns, porventura, imprevistos para orientar o nosso destino comum. Para tal, é preciso começar por compreender que, além da crise económica, é todo um mundo que a nossos olhos se está a desagredar. Chegamos, com efeito, a um estado de fragilidade das instituições, das categorias sociais, das hierarquias vindas da velha sociedade industrial. O Estado age menos agora como um árbitro entre grupos de interesses do que como um regulador que defende a sua economia num âmbito de globalização financeira. Como escreveu Alain Touraine, (Après la crise, Paris: Seuil, 2010) a sociedade já não existe. O divórcio entre os actores e o sistema está mais do que nunca consumado. Este autor utiliza o termo de “situação pós-social” para designar tal situação que, na Europa, é emblemática. Tal expressão significa, nomeadamente que, se os actores sociais não desapareceram, deixaram o lugar a outros actores não sociais. O capital financeiro, sobretudo, separou a economia dos outros segmentos da vida social provocando a grande crise que estamos agora a viver. Sobre os fragmentos de um presente em plena decomposição, múltiplos factores nos puxam para duas direcções opostas, que indicam dois tipos de saídas possíveis da crise: de um lado, um reforço das desigualdades e da exclusão social; do outro, a criação de uma vida comum respeitadora da Terra e da subjectividade de cada um de nós.

Cada um de nós vai ter que escolher mais tarde ou mais cedo, o caminho.

Somos todos culpados e vítimas.

sexta-feira, 14 de outubro de 2011

DA UTOPIA À FRONTEIRA DA POBREZA


A crise económica e financeira atual dá-nos uma oportunidade única de investir na mudança.


Portugal é um frágil país, numa Europa à deriva, no contexto do Ocidente que perde relevância face ao mundo Asiático e Latino-Americano em cada dia que passa.

Sobre nós paira uma crise que é global mas que é agravada por fatores internos em que todos nós, portugueses, temos grandes responsabilidades.

Como já várias vezes assinalou o Prof. Adriano Moreira “a evolução para o Estado Exíguo está em curso” (cf. Adriano Moreira, Da Utopia à Fronteira da Pobreza, INCM, 2011, p. 11). E, também, na mesma obra (p. 14) acrescenta: “Infelizmente, a fronteira da pobreza atravessou o Mediterrâneo e parte do território europeu está por ela abrangido. Portugal não pode ignorar o facto, e tem o direito de esperar do civismo que um conceito estratégico nacional seja finalmente formulado e executado com devoção. Ninguém escolhe o país em que nasce: mas decidir ficar é um acto de amor. E de vontade de reinventar novos futuros”.

É tempo de inventar novos futuros e, também, de impedir a palavra crise de emergir em todo o espaço público e em todas as conversas privadas. O passado já não volta e o presente é onde o futuro poderá enraizar-se em novas primaveras se quisermos, ou seja, se não nos pusermos a morrer.

Todos reconhecem que o nosso tempo é complexo e de grande risco e não tem estadistas à altura dos problemas que o atravessam. Eles continuam a gerir o passado, com medo do presente e sem coragem para inventar o futuro. E é de futuro que precisa a Europa e, em particular, Portugal. Mas não é só isso. Há, por aí, muitíssimos economistas que são também responsáveis pela situação atual e que continuam a perorar, alto e bom som, numa comunicação miserabilista e mercantilizada como nunca antes se viu.

Na verdade, os economistas construíram, nos últimos anos, o quadro inteletual utilizado pelos reguladores financeiros para justificar a sua inação e pelos banqueiros centrais para afirmar que as “bolhas” eram impossíveis.

Os economistas também construíram os modelos sobre os quais se baseiam os bancos centrais para dizer que, para garantir um crescimento duradouro, basta ter uma pequena inflação. Por fim, também contribuíram para a moldagem das ideias dos dirigentes políticos. Os homens políticos não são economistas e deixam-se encantar pelos “sound bites” do momento. Ora, nos últimos 25 anos, os economistas afirmaram que não era necessário regular a finança, e também isso contribuiram para tornar a crise possível. A teoria económica apresenta-se como um mundo auto-suficiente, numa falsa representação da realidade, mas que sobrevive sem prazo.

Ora é urgente tentar mudar a ciência económica e fazer entender aos economistas os limites das suas teorias; que o passado já foi e que é preciso construir o futuro com novos instrumentos. É difícil, mas terá de ser.

A crise económica e financeira atual dá-nos uma oportunidade única de investir na mudança e de substituir uma política sem futuro, de curto prazo, por uma outra, a longo prazo, reflexiva, capaz de enfrentar os mesmos desafios que hoje temos pela frente e de construir um novo horizonte sustentável.

Não creio que, com os partidos que gerem a democracia, em Portugal e na UE, e tendo em conta os extensos e profundos lóbis instalados em conluio com esses partidos, haja alguma possibilidade de transição pacífica.

É preciso pensar a economia como um lugar onde se constrói a vida em conjunto, disse Elena Lasida (Le gôut de L’antre) e, para tal, os economistas não estão preparados. Os políticos atuais muito menos.

Certo, certo é que o que aí vem vai ser desumano.

Indispensável, será, pois, uma mudança em profundidade em quase todos os paradigmas que nos trouxeram até à atualidade. Feita por Homens e para os homens. Como, não sei.

quinta-feira, 29 de setembro de 2011

A DEMOCRACIA EM SUSPENSO

Há entidades não eleitas que cada vez mais determinam o nosso estar e que configuram um grave e complexo desafio às democracias.
Há trintas anos que a gente deste país acha que a democracia e o voto lavam as vergonhas dos políticos” – escrevia recentemente Henrique Monteiro, no Expresso, zangado com Alberto João Jardim e as suas trapaças. Numa interpretação linear vai dito, nessa frase, que a democracia está dominada pelo voto mesmo que seja em políticos desavergonhados.
É verdade, mas não diz tudo.
A democracia é um modus operandi que pretende confiar aos cidadãos a escolha dos titulares do poder político, mas é um sistema imperfeito, como ninguém ignorará. Será, ainda, melhor que qualquer alternativa (Churchill), mas não chegamos ao fim da história.
Vivendo em Portugal nos dias que correm, parece que ninguém poderá negar que a democracia, consagrada na Constituição, já pouco vale, está em período de suspensão, tanto quanto a perda da soberania nacional, em múltiplos níveis, é um facto incontestável. Obviamente que para esta situação concorre, decisivamente, o acordado (imposto) com a chamada “Troika” e a vontade (sobranceria) da Sr.ª Merkl que, sem pejo, ainda há dias dizia que a perda de soberania era a fatura a pagar pelos países endividados.
Cabe atentar, pois, desde logo, no poder real das entidades não eleitas (FMI, BCE e tantas outras) que cada vez mais determinam o nosso estar. Além do mais, elas configuram um grave e complexo desafio às democracias na medida em que pela sua força (económica e financeira) podem inverter completamente as decisões que são tomadas pelos políticos eleitos (cfr. Frank Vibert, The rise of the unelected).
Tudo isto se insere nas novas ameaças à democracia que os sistemas políticos ocidentais, de resto, espelham. Todavia, há variáveis que, desde há muito, têm tido participação ativa na fragilização das democracias e que são de carater endógeno. A título não exaustivo poder-se-ão referir: a falta de qualidade da generalidade do pessoal político; a captura do Estado por lóbis e interesses ancorados nos vários partidos políticos; o funcionamento autocrático dos mesmos partidos; o anestesiamento da sociedade civil; o não reconhecimento do mérito nas escolhas políticas; a corrupção generalizada quando estão em causa dinheiros do Estado e interesses privados; a desconstrução do Estado Social (Segurança Social, Saúde, Ensino público) e tantos outros aspetos que, de tão subtis, nem sempre se conseguem identificar.
A democracia que muitos enraizaram em Abril de 74 – democracia do poder, do ter, do saber, do ser – se nunca se alcançou plenamente, hoje está a regredir para o tempo escuro de antes de Abril. Provavelmente poucos enquadram o atual processo político neste itinerário, mas seria curial que, ao menos intelectualmente, todos os cidadãos se colocassem aquele tipo de questões.
A acrescer às referidas fragilidades da democracia que temos, é necessário referir a inefectividade do poder judicial para resolver os casos de exercício ilegítimo e criminosos, por vezes, do poder político a todos os níveis. Não defendo, obviamente, a politização da justiça, mas reclamo que esta atue com rigor, competência, independência e a tempo perante indícios de crimes cometidos à roda da política e não só por políticos. O caso BPN, onde o “cavaquismo” tem as mãos sujas, é um dos exemplos que não se podem esquecer.
A democracia e o voto não deviam levar as vergonhosas e criminosas ações dos políticos. Mas a verdade é que, num país onde prima a impunidade dos fortes (os fracos e frágeis estão todos os dias a ser julgados) a política serve para tudo e lava mais branco do que a ética e a justiça.
Também por aqui a democracia se esvai em cada novo caso que vem à luz do dia.
Resistiria se os cidadãos conhecessem a verdade toda?

quinta-feira, 22 de setembro de 2011

A CRISE ESCONDIDA

Quem não tem já nada a perder, pode levar à perdição toda a sociedade.

A crise actual é uma bomba ao retardador que ainda não mostrou, sequer, todos os seus efeitos sobre o emprego e o nível de vida das famílias. Na verdade, as repercussões da profunda recessão, em que vamos mergulhando, sobre o emprego fazem-se, sempre, sentir com um certo desfasamento no tempo. De igual modo, existe também um lapso de tempo, maior ou menor, entre o aumento do desemprego e o crescimento do número de necessitados de prestações sociais.

Ora, é de prever que a situação dos desempregados vá tornar-se cada vez mais crítica à medida que se prolonga a crise e é, por isso, urgente reagir, desde já, a esta tragédia social que abalará cada vez mais a sociedade pois, sem novas medidas de solidariedade, é a própria coesão da sociedade, no seu conjunto, que vai ficar ainda mais fragilizada, podendo, mesmo, vir a ser a pólvora que detonará a revolta social e as suas imprevisíveis consequências políticas.

Perder o emprego é perder os rendimentos da actividade que lhe está associada. E mesmo que o sistema de protecção social preveja redes de segurança, esses rendimentos de substituição não permitirão manter o mesmo nível de vida. Além de que não são eternos.

Os tão apregoados “brandos costumes” dos portugueses não se manterão, decerto, ao chegar mais exclusão social, e, até, a fome. Ora já estão reunidas todas as condições para que, mais dia, menos dia, tal momento aconteça. Seria bom, pois, que os responsáveis políticos não ignorassem, nas suas decisões, que, quem não tem já nada a perder, pode levar à perdição toda a sociedade.

Vivemos numa sociedade que é essencialmente consumista, que transferiu os seus valores de ideais para objectos, para o imediato, para o virtual. E não é fácil – mas é necessário – voltar atrás, à vida honesta (viver de acordo com as nossas possibilidades), ao respeito pelos outros (não lucrando gananciosamente à custa dos nossos semelhantes), à justiça (na distribuição dos rendimentos, na sua taxação e nos sacrifícios que são pedidos pelo Estado).

É puramente ilusório acreditar que alguém nos virá tirar do atoleiro em que estamos. Mais realista, de resto, será pensar que muitos dos nossos parceiros, na União Europeia e fora dela, anseiam pela continuação da crise portuguesa (e de outros países) com o que vão ganhando fortunas. Sublinhe-se, no transe, que entre os “remédios” que os nossos “amigos” da “troika” nos impuseram tão generosamente está a alienação do capital das nossas maiores empresas públicas, com o que, no final, nos deixarão como servos de gleba do século XXI.

A saída da crise é dificílima, ninguém o ignora.

quarta-feira, 14 de setembro de 2011

O DECLÍNIO DA EUROPA

A crise impõe - se se pretende vencê-la – que os Estados europeus redefinam os seus projectos a médio e longo prazo, bem como, se o têm o seu projecto comum.

Há muito que a Europa vive sem glória e sem um grande desígnio, desfeita em migalhas de poderes, e continuamente a assobiar para o lado face aos gravíssimos problemas que se lhe vão deparando. Indecisa, envolta em nevoeiro, não sabe já quem é, nem o que quer vir a ser, parecendo, apenas, esperar, em pânico, pela emissão da sua certidão de óbito.

Enquanto a crise económica e financeira se agrava, na UE e um pouco por todo o Ocidente, começa a instalar-se na mente de muitos a ideia de que a Europa irá conhecer um declínio comparável, provavelmente, à lenta queda do Império Romano. Do enfraquecimento da ética e da moral, ao cinismo dos ricos, passando pelo medo dos “bárbaros”, as analogias não faltam. E tudo se complica pela falta de ideias e de líderes capazes de estabelecer um rumo contra o processo de agonia vigente.

Ainda será possível salvar-se a Europa? Um grande número de intelectuais vem se juntando já à cabeceira do “Velho Continente”, moribundo, soltando lágrimas de crocodilo enquanto outros propõem, apesar de tudo, várias possibilidades para um outro futuro político para a Europa, no sentido de contraditar o declínio. Mas terão de ser, antes de mais, os povos e não os políticos a querer relançar a construção europeia. E esta não é uma causa que seja partilhada, na hora actual, por todos os povos. A evidencia dos factos até aponta em sentido contrário.

A crise impõe - se se pretende vencê-la – que os Estados europeus redefinam os seus projectos a médio e longo prazo, bem como, se o têm o seu projecto comum. Se querem ter uma hipótese de sucesso terão de lutar, antes de mais, por uma solidariedade financeira entre os Estados membros. Os governos, por seu turno, não se podem contentar em apenas reagir aos caprichos dos mercados, administrando uma qualquer terapêutica paliativa, nem poderão, também, continuar a cingir-se à implementação de um simples código de boas práticas financeiras pois o equilíbrio orçamental não pode ser apresentado como única finalidade e, mais austeridade sobre austeridade, nunca poderá ter sucesso, bem pelo contrário. Terão, por isso, de dar outros passos e dizer aos eleitores europeus para onde é que os querem guiar. E, é urgente reagir, porque enquanto imperarem os interesses das agências de rating e os dos seus gananciosos investidores o desemprego manter-se-á num nível muito elevado, a crise social agravar-se-á e o populismo político prosperará à custa da acumulação dos custos sociais da crise.

Portugal, à sua dimensão, terá também que defender causas relacionadas com o futuro europeu. Temos, também nós, de olhar para a UE de outros sítios, talvez mais improváveis, para nela ver mais do que um qualquer organismo distribuidor de dinheiro fácil tal como tem acontecido até agora.

Temos (como referia recentemente Eduardo Lourenço) de nos ler e de nos lermos na Europa com uma intensidade e profundidade que nunca antes tivemos e sem ceder à tentação da preguiça, ou iludindo-nos ao apontar para os “outros” todas as culpas pela situação actual e deles, apenas, esperando (sentados) soluções milagreiras.

Afinal somos Europa, ou não?

E pretendemos continuar a sê-lo, ou temos alternativas neste mundo globalizado?

E o que estamos dispostos a fazer e a dar por essa Europa que, além do mais, precisa de se redefinir constitucional e programaticamente?

Seria bom que o debate sobre a Europa tomasse efectivamente conta do nosso espaço público. Tal poderia, pelo menos, ajudar-nos a sair da angústia existencial presente e a pensar num futuro de grandeza para a nossa civilização milenar de europeus.

Há carpideiras a mais neste tempo enquanto se expande uma austeridade estúpida, indecente e desumana.

quinta-feira, 8 de setembro de 2011

COMO SAIR DA CRISE

Solidariedade é necessária. No nosso país, na U.E. e no mundo.

Apresenta-se a crise financeira, económica e social que atravessamos como um efeito de erosão de valores sociais, culturais, identitários e de coesão nacional. Sem negar tal realidade, impõe-se perceber, desde logo, que essa erosão de valores é muito anterior ao despoletar da actual crise e, por outro lado, que também ela contribui – e muito – para tal crise.

O desprezo dos valores esteve na origem da crise que nos submerge, e, esta, só poderá ser ultrapassada com valores.

«Na realidade, e na verdade, “os valores” são grandes ideais sociais, depositados na forma universal do conceito – e sedimentados ao património cultural que envolve a deriva das condutas e dos comportamentos – como horizonte (normal) de regramento. São o produto de um trabalho – demorado, complexo, e sinuoso – da consciência social (de gerações, de comunidades de interesse) que, por eles e neles, do mesmo passo que reflecte (na sua facticidade, potencialidade, e anseios) todo um ser social internamente modelado pela contradição, procura igualmente ganhar uma imagem de si própria (para consumo interno, e uso externo), e ainda perspectivar a sua própria condição, ou situação, em termos de um projecto prático de realização histórica – nacitoriedade do acontecer, ou na escatologia de um «Além»”. (José Barata Moura, Valores e Crise).

As transformações que, nas últimas décadas, têm feito vacilar as nossas vidas, levaram-nos para territórios novos, mas não nos preparamos com anterioridade para isso, antes desconstruímos os ideais sociais que nos trouxeram até recentemente sem que nada os tenha substituído. Não sabemos para onde vamos, que ambições, valores, levar na bagagem, e caminhamos sem bússola rumo a qualquer sítio, que nem sabemos onde é. O efémero é o nosso deus, a obsolescência acelerada de qualquer princípio ético é a nossa companheira de viagem, a frivolidade dos valores é-nos indiferente, o consumismo desenfreado a nossa lei.

Não sei – quem sabe? – se será possível perspectivar valores novos, designadamente de tipo espiritual, mas tenho a convicção de que alguns, sejam novos ou não, tem de alicerçar o nosso destino. Com carácter de urgência.

O mundo como está, dominado pela finança gananciosa, por interesses económicos sem regras nem ética, por ideias materialistas, individualistas e narcisistas, pelo hedonismo e pela urgência da satisfação imediata de qualquer tipo de ambições não tem devir. Acreditar que vai emergir outro paradigma é não só uma questão de fé, mas, também, de sobrevivência.

Ainda esta semana, no relatório Trade and Development 2011 (Comércio e Desenvolvimento 2011), divulgado pela Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento (UNCTAD), essa organização sublinhava que a consolidação das finanças públicas só responde aos “sintomas do problema” e não às suas causas profundas, acrescentado que o desenlace é de prever – “um risco significativo de gerar um período prolongado de crescimento medíocre nas economias desenvolvidas – se não mesmo de contracção”.

Certamente que Portugal, um pequeno país semi-periférico (na Europa que não no mundo atlântico) não terá os meios nem os instrumentos suficientes para obviar aquele referido desenlace. Mas pode ser um farol, assim todos nós o queiramos.

De qualquer modo os “outros”, os que estão a engordar financeiramente à custa da crise e, em particular, da calamitosa situação portuguesa, talvez devessem pensar que sem economias pujantes (a galinha) mais tarde ou mais cedo vão deixar de contar com os rendimentos da nossa austeridade (os ovos). E depois?

Solidariedade é necessária. No nosso país, na U.E. e no mundo.

Os momentos maiores da História foram sempre aqueles em que se privilegiou o Homem. É esse, também, agora, o desafio.

quarta-feira, 27 de julho de 2011

CRISE, CRIME E IMPUNIDADE

Uma vez mais foram socializadas as perdas e privatizamos os benefícios. E a procissão ainda vai no adro…

O crescimento dos últimos anos, antes da atual crise, foi, tão rápido como virtual. Cometemos, nesse tempo, um grave erro ao não aproveitar devida e democraticamente tantos fundos que tivemos à disposição para desenvolver a nossa economia, aumentando, nomeadamente, a produtividade e o desenvolvimento tecnológico. Desaproveitámos uma oportunidade de ouro para reforçar os serviços públicos e, portanto, construir um país mais justo, solidário e equitativo. Também, não aproveitámos o crescimento para avançar na coesão social.


Alguns – os oportunistas do costume, as clientelas partidárias e os abutres da economia e da finança – encheram-se, porém, à tripa forra, como vamos, agora, percebendo.


Entretanto vieram os ventos da crise, que não param de soprar, e esses, mesmos oportunistas e abutres mudaram-se para novos poleiros continuando tranquilamente a ganhar tanto quanto nós, cidadãos comuns, continuamos a perder. A pouca riqueza que produzimos é distribuída apenas por alguns e nunca chegará, sequer, para o país pagar as suas dívidas, crescentes, apesar de todos os sacrifícios impostos aos cidadãos.


Num tempo em que o dinheiro é rei e senhor das nossas vidas, o Estado resgatou a banca e empenhou no sistema financeiro dinheiro público para pagar fraudes e crimes económico-financeiros dos magnatas da banca.


Uma vez mais foram socializadas as perdas e privatizamos os benefícios. E a procissão ainda vai no adro…


O caso do BPN será, porventura, o mais elucidativo do que se afirmou acima. É certo que, três anos volvidos sobre o conhecimento público da situação, há um julgamento em curso, cerca de duas dezenas de inquéritos a correr na justiça criminal e perto de trinta arguidos constituídos – alguns dos quais, diga-se, continuam no “mercado” a fazer as suas negociatas, a brilhar nos melhores restaurantes de Lisboa e a pavonear-se nas praias algarvias e nas revistas cor de rosa. Diz-se, entanto, que, pelo menos, 800 milhões de euros terão sido desbaratados em negócios ruinosos e também aconchegado as contas bancárias e o património de vários intervenientes nesse escândalo.


Ora, se se pode compreender (dificilmente) a morosidade da justiça em agir criminalmente, não se pode aceitar, de todo, que tantos milhões não tenham sido apreendidos pelos Tribunais acautelando os interesses do Estado e a efetiva realização da justiça. Refiro-me, no transe, aos dinheiros que circulavam no BPN e na SLN, sua detentora, e que de favoreciam uma casta de plutocratas que continuam por aí a rir-se de todos nós usufruindo dos resultados dos seus crimes enquanto muitas empresas fecham as portas por dificuldades económicas graves (a que ninguém acode), o desemprego aumenta, e as pessoas e as famílias, endividadas em limites insuportáveis, caem para a valeta da sociedade (e o Estado social se desvanece).


E, neste contexto, imperativo patriótico e moral assinalar a quem de direito que o dinheiro resultante desses crimes – e o de outras fraudes fiscais e da corrupção em geral – não se evaporou. É preciso é ir no seu encalço e recuperá-lo para o Estado e para os seus legítimos donos.


Quem lucrou com esses negócios ilícitos? Quem recebeu lucros, dividendos e quem contraiu empréstimos fraudulentos na banca sabendo que os não iria pagar? Quem aumentou despudoradamente o seu património nesses negócios ilegais e imorais? Onde está, enfim, o dinheiro (ou o património) dai resultante?


A crise que nos atormenta e promete levar-nos à miséria poderá encontrar um lenitivo se forem postos a nu aqueles que se alimentaram, ao longo de anos, de todas essas falcatruas. Mas será que o poder político quer e pode (não estará comprometido nos escândalos?) deitar mão aos instrumentos legais que tem ao seu dispor ou criar outros adequados a este tipo de criminalidade?


No nosso país o crime continua a compensar.

quinta-feira, 14 de julho de 2011

OS NOVOS SENHORES DO MUNDO

O enfraquecimento dos Estados e dos cidadãos, tem o seu reverso, hoje, na crescente vitalidade de fundos especulativos e de bancos de negócios.

Nunca estará tudo dito sobre os factores que arrastaram Portugal e outros países para uma crise que não parece ter fim nem solução à vista. Mil são os diagnósticos, outros tantos os comentários, mas certo parece ser, apenas, que a crise se auto-alimenta e, na sua voracidade, chegará a mais países. Ninguém consegue, porém, prever qual o desfecho que tudo isto terá.


A Europa, a União Europeia mais precisamente, aparece hoje como a principal vítima da crise desencadeada em 2008 pela avidez da finança internacional. A tal ponto que a integração europeia parece ameaçada, e em particular, a sua realização mais avançada que é o euro. Para sobreviver à crise, a UE necessita de um avanço qualitativo na integração que lhe dê finalmente os meios para corrigir as suas principais limitações. A Europa está, porém, paralisada pela sua incapacidade de gerir solidariamente os seus problemas relacionados, nomeadamente, com os seus desequilíbrios internos. Ainda que relevante à escala do país, a dívida pública da Grécia não pesa mais do que 3,7% do PIB da zona euro e, mesmo que se adicionem as dívidas da Irlanda e de Portugal, o global só atinge 7,4% do PIB da zona euro.


O problema é, de facto, mais fundo. A UE não tem líderes à altura de resolver problemas que não sejam de mercearia. Também está à deriva por falta de uma estratégia e um projecto comum. O que lemos e ouvimos cada vez mais nos empurra para a possibilidade da germanização da Europa. A História deveria, neste aspecto, ser mais útil e tornar-nos mais lúcidos.


O enfraquecimento dos Estados e dos cidadãos, por outro lado, tem o seu reverso, hoje, na crescente vitalidade de fundos especulativos e de bancos de negócios. A excessiva autonomia ganha pela economia perante a política, colocou sob os holofotes uma minoria de actores cujo poder é cada vez mais inquietante.


Os desenvolvimentos da crise de 2007 evidenciou que as escolhas económicas dos Estados choca com a acção de alguns grandes especuladores que exercem pressões tanto mais incisivas, quanto os Estados estão enfraquecidos. A Grécia é vítima desta situação e continua a enriquecer a finança sem rosto, implicada no seu sobreendividamento e também na especulação quanto à sua dívida. Mas, como não existe nenhuma lei contra a ganância, o objectivo destes poderes não eleitos é fazer dinheiro sem se preocuparem com o que vai acontecer aos cidadãos gregos. E o mesmo está acontecer em Portugal.


As escolhas dos Estados são cada vez mais subordinadas às reacções dos “mercados” cujo funcionamento ninguém controla. Na verdade, a liberdade dos mercados, que, conforme os princípios económicos dominantes, tem de ser respeitada pelos governos, ganha nova força quando a concentração dos activos financeiros confere a certos destes actores a capacidade de restringir, mesmo, as liberdades públicas. Este poder dos impérios financeiros perante as democracias abre, necessariamente, o debate sobre a separação da economia e da política e, até, poderá estar a pôr em causa a democracia.


Vivemos momentos dramáticos que, inelutavelmente, se vão ver agravados no futuro próximo e, até, porventura muito mais além.


Erros nossos, má fortuna, ganância alheia.


E que está ao nosso alcance fazer para mudar o rumo dos acontecimentos? Será dramático mas não se configura no horizonte nada de esperançoso. A miséria, a exclusão social, a destruição da economia crescem todos os dias e não se pense que é o programa que nos foi imposto pela “troika” que nos vai tirar do lamaçal.


Vai, nesta reflexão, muita angústia, mas não desespero. Há outros mundos, outras formas de viver, muitos objectivos que ainda estão ao nosso alcance. Urge, porém, começar a pensar a sério com outros instrumentos e de diferentes sítios.


É aqui que surge a ideia de metapolítica como derradeiro espaço para abrir novas possibilidades.

quarta-feira, 22 de junho de 2011

A JUSTIÇA DO NOSSO DESCONTENTAMENTO

É urgente parar e pensar, olhar a justiça de outros, novos sítios, “ir para além das fachadas” e das evidências do senso comum, e das pretensas verdades feitas e acriticamente repetidas.


Múltiplas questões ligadas à Justiça são fonte de preocupação para os portugueses e, vistas no plano internacional, como causa, mesmo, de dificuldades para a actividade económica, nomeadamente o investimento estrangeiro.


E, como uma desgraça nunca vem só, fomos confrontados agora com a gravíssima polémica relativa aos auditores do Centro de Estudos Judiciários – futuros magistrados – apanhados a copiar ao prestarem provas de aferição de conhecimentos com o que a decadência do sistema de justiça se anuncia ainda mais negra.


Um magistrado, seja Juiz ou Procurador, não é só alguém que domina a técnica de interpretação e aplicação das leis. Para isso bastará, de resto, em breve, um simples computador. À arte da profissão terá necessariamente de aliar muita prudência, qualidades éticas, honestidade irrepreensível e, também, grande experiência de vida. Caso contrário não prestam.


Este episódio triste – e que, estou certo, tem precedentes – vem, também, demonstrar que os problemas maiores da justiça não relevam apenas da falta de verbas no respectivo orçamento mas, sobretudo, da raridade de homens e de mulheres em toda a dimensão da palavra.


Hoje, a luta pela sobrevivência atinge espaços indizíveis e deixa de rastos os mais elementares valores de uma civilização. Quando atinge, porém, os membros futuros de um órgão de soberania – os tribunais – a incapacidade permanente de sanear o sistema evidencia o quanto a degenerescência ética já atingiu a nossa sociedade mercantilizando até a justiça. E o mal já vem de há muito, neste aspecto, ao que não é alheio o facto de a lei permitir brincadeiras sindicalistas também a titulares de órgãos de soberania, o que me faz vir à memória uma rábula magnífica, protagonizada por Ivone Silva, já lá vão muitos anos, em que discutia consigo própria ora como “Olívia patroa”, ora como “Olívia costureira”…


Num tempo caracterizado por um crescente protagonismo social e político dos tribunais e dada a sua inegável centralidade na consolidação do sistema democrático é urgente parar e pensar, olhar a justiça de outros, novos sítios, “ir para além das fachadas” e das evidências do senso comum, e das pretensas verdades feitas e acriticamente repetidas.


Os tribunais, em Portugal, vivem, ainda, em situação de opacidade funcional e institucional inaceitáveis. Tal foi, de resto, reconhecido em estudo profundo coordenado pelo Prof. Boaventura Sousa Santos e do qual resultou um livro incontornável: Os Tribunais nas Sociedades Contemporâneas – o caso português (ed. Afrontamento, 1996). E, neste contexto, muitos Juízes e Procuradores, normalmente os mais incapazes, tratam a Justiça como proprietários de um quintal que é só deles e onde, por isso, agem a seu bel prazer desprestigiando, frequentemente, outros actores judiciários, como os advogados, e, também, menorizando os cidadãos que recorrem à Justiça ou a ela são chamados em diferentes qualidades.


São reconhecidamente necessárias reformas estruturais no sistema de justiça, decerto para aumentar a sua eficiência e eficácia mas, mais que tudo, a sua qualidade e transparência.


A questão dos auditores do CEJ acima aflorada tem a ver com a qualidade dos servidores da Justiça. Quem mais de perto vive o quotidiano dos tribunais sabe como são dramáticos os problemas relacionados com a formação, frágil, dos magistrados, disfarçada, tantas vezes, em arrogância desmedida.


Se ainda resta alguma coragem a quem tem responsabilidades funcionais ou políticas e, também, um mínimo de ética de responsabilidade, a desonestidade desses auditores tem de ser exemplarmente punida. Eles demonstraram – os que comprovadamente copiaram – que não tem raízes para crescerem como cidadãos acima de qualquer suspeita, quanto mais para serem magistrados judiciais.


A Justiça só tem sentido enquanto for um serviço do Estado em benefício dos cidadãos e não um qualquer poder majestático que vive fechado em si, irresponsável, e onde tudo vale.

quarta-feira, 15 de junho de 2011

ACREDITAR

É preciso ser realista, mas também, acreditar.

Paira sobre a sociedade portuguesa – sobre as pessoas, sobre as famílias, nas empresas – uma inegável desorientação face ao que o futuro nos reserva. Sabemos que o que aí vem trará consigo muitos sacrifícios no plano do nível de vida podendo sacrificar, mesmo, direitos sociais até agora indiscutíveis e com grave risco de exclusão social de muitos cidadãos mais vulneráveis.


Terminado o ajuste de contas eleitoral entre os partidos, o certo é que as Cassandras não se calaram, mas ninguém ainda sabe, com um mínimo de objectividade, a tão anteriormente reclamada verdade sobre o estado do Estado – e parece até que isso já deixou de ser preocupação política! – nem as concretas medidas a que iremos estar sujeitos sob a tutela dos nossos credores internacionais.


Neste contexto, vacilamos entre a autoflagelação e o messianismo, mas não curamos do que está ao nível de cada um mudar. E isso seria, agora, o mais importante. Que pode, pois, cada um de nós fazer para “abrir novos possíveis” (José Gil) no seu espaço específico de actuação?
Poder-se-ia por começar por assumir uma nova exigência ética (política) perante nós e os outros. Este é um aspecto que nenhuma lei, nem autoridade pública nacional ou poder externo, financeiro ou outro, poderá alterar. Só cada um de nós, com efeito, conseguirá, com empenho, contribuir para uma nova, melhor, sociedade civil e uma outra cidadania.


Com a liberdade alcançada em Abril de 74 surgiu um outro espaço público e cresceram as ambições, tanto quanto as nossas ilusões. Consagraram-se na Constituição da República e nas leis que a vieram a densificar direitos económicos e sociais viáveis num Estado rico e numa economia pujante, quando não deixamos de ser precisamente o contrário. A posterior adesão à então CEE, hoje UE, fez-nos convencer, com todo o dinheiro que foi chegando ao país sem qualquer esforço nosso, que éramos ricos e que como tal tínhamos o direito de viver. Enquanto isso, os reais problemas da nossa economia foram escondidos recorrentemente debaixo do tapete.


E chegou a hora da verdade…

Hoje, ninguém consciente das mais elementares condições do país tem uma ideia sobre para onde vamos ou, pior, já desistiu e abalou para outras paragens. E só uma coisa é certa: não somos ricos para manter o trem da vida que levamos.

Tudo isto se passando debaixo dos nossos olhos é compreensível que muitos se sintam derrotados e sem esperança e assim entendem também o país. Somos atreitos a ter pouca auto-estima, a perder a fé com facilidade o que tem sido qualificado, por quem estuda o fenómeno, por neuroticismo ou tendência para a neurose colectiva. Nestas ocasiões seria conveniente olharmos para o mundo e ver a situação de outros povos que enfrentam (ou enfrentaram e venceram) situações porventura piores do as que hoje nós atravessámos. A desgraça atrai mais desgraça e o pessimismo reinante, além de não levar a lado nenhum, pode vir a ter gravíssimas consequências a prazo.

É preciso ser realista, mas também, acreditar. É nas noites mais escuras que se vêm melhor as estrelas.

Há-de surgir uma saída política para um povo, que já foi muito grande no passado, deixar de ter razões para o desespero que legitimamente sente na actualidade. Temos que acreditar que é possível vencer – traçando metas e objectivos a cumprir com rigor e solidariedade nacional. Com sacrifício também.

Por mais noite que faça, o dia há-de voltar.

quarta-feira, 1 de junho de 2011

DEMOCRATIZAR A DEMOCRACIA


Estamos no fim de mais uma campanha eleitoral e é possível afirmar que é notório que os partidos e a sociedade civil andam de costas voltadas no essencial.

No passado sábado, em momentos diferentes e com pessoas distintas, tive ocasião de testemunhar duas conversas telefónicas entre um pai, uma mãe e dois adolescentes que com eles abordaram, cada qual com o seu progenitor, percalços daquela manhã soalheira. Percebi que um dos adolescentes discorria sobre os trâmites da campanha eleitoral de um partido em que estava envolvido e dava conta ao pai das últimas incidências da causa por que se apaixonara e tanto o absorvia. O outro apelava à mãe para que resolvesse uma qualquer questão derivada de ainda não o terem ido buscar os do seu grupo de escuteiros para ir para um certo hipermercado onde se ocuparia de recolher donativos para o Banco Alimentar Contra a Fome.


Acrescento, ainda, que, durante a semana me chegaram ecos variados de ajuntamentos de jovens, no Porto (e noutras cidades do país e do mundo sobretudo nas Puertas del Sol, em Madrid) protestando contra qualquer coisa envolvendo a precariedade mais a fragmentação e a liquidez do momento actual.


Apenas registo as situações, sem qualquer moralismo ou mero juízo de valor, até porque um dia também fui jovem militante partidário tanto como escuteiro, ainda que em diferentes tempos.


Democratizar a democracia poderá ser a ideia aglutinadora, plena de esperança, que atravessa todas as referidas situações. A este propósito devo aqui sublinhar o recente livro de Boaventura Sousa Santos (Portugal, Ensaio contra a autoflagelação, Almedina) onde colhi tal expressão e que merece ser lido e discutido. Anoto uma passagem do mesmo (p. 102): (…) “Não será possível democratizar o mundo, refundar democraticamente a Europa ou preparar as sociedades nacionais para os imensos desafios do futuro sem uma profunda transformação dos sistemas políticos que combine a democracia representativa com a democracia participativa, o que, em muitos casos, implica a reformulação intercultural de cada uma delas. Sem o envolvimento mais denso e comprometido dos cidadãos e das comunidades na condução da vida política, a democracia continuará refém da anti-democracia, isto é, de interesses que à revelia da maioria dos cidadãos geram maiorias parlamentares a seu favor”(…).


Muitos estaremos, decerto, de acordo com esta reflexão. E disponíveis para agir, também?


Estamos no fim de mais uma campanha eleitoral e é possível afirmar que, mesmo na intensidade político-partidária específica da mesma, é notório que os partidos e a sociedade civil andam de costas voltadas no essencial. E a situação é crítica porque, afinal, a partidarite que campeia neste tempo é uma competição folclórica que todos os cidadãos têm de pagar com os seus impostos nada recebendo em troca. Para fazerem e dizerem o que fizeram e disseram, os partidos não mereciam mais do que cinco dias para campanha eleitoral. E sem subsídios do Estado.


Além disso é de sublinhar que, há muito, os partidos instrumentalizam cidadãos – por vezes de forma criminosa – para com eles fazerem a sua propaganda, quando o que lhes competia, em democracia, era “investir” na sua formação cívica e política – o que justificaria o comprometimento ou filiação partidária. Ora nada disso acontece e, ao contrário, os cidadãos deste país só interessam aos partidos nos momentos eleitorais. Passados estes, nunca mais um cidadão chega à fala com os ilustres eleitos, salvo se pertencer à nomenclatura, isto é, ao restrito grupo que se senta à mesa do orçamento colhendo as benesses do partidarismo.


A sociedade civil encontra-se em situação comatosa e, salvo raras excepções – líquidas, precárias, sem estratégia clara – não sai de uma democrática passividade com o que, como já se pode ver, se compromete o futuro da própria democracia. Hoje a desilusão com a democracia é inegável e não se sabe o que nos reserva o futuro, que fantasmas a política sem crédito nos colocará no caminho.


Democratizar a democracia, pois. Mas para tal há que mudar a nossa atitude cívica no percurso de toda uma vida e não, apenas, reclamar e protestar em tempo de crise, por vezes numa insensata autoflagelação, quando o que é preciso para agarrar um novo, outro mundo de esperança.


Só por acaso se encontra, neste tempo, a democracia no seio dos partidos. Mas a sociedade civil é depositória privilegiada dos instrumentos de mudança democrática.


Confiemos.

quarta-feira, 25 de maio de 2011

NOS CINQUENTA ANOS DA AMNISTIA INTERNACIONAL

Para além de tudo – e tanto tem sido – que a Amnistia Internacional tem feito em prol da defesa dos direitos humanos, abre-se agora um novo espaço de intervenção ao qual devemos prestar mais atenção e que deriva também do globalismo que impera no mundo.

Foi em 28 de Maio de 1961 que formalmente foi fundada a Amnistia Internacional pelo advogado britânico Peter Benenson pelo que ocorre, agora, a passagem do seu cinquentenário. É a organização não governamental que provavelmente mais se tem empenhado na defesa universal dos direitos do homem – e, só por isso, esta data justifica uma lembrança. Outra razão, porém, se levanta, aos olhos dos portugueses, para que se sublinhe o momento. É que os motivos que levaram Benenson a agir e a dar corpo à ideia dessa organização estiveram ligados à sua profunda inquietação pessoal perante o tratamento violento dado pela polícia política de Salazar e dos seus tribunais a dois estudantes portugueses que terão cometido o “horrível” crime de gritar, no espaço público, o seu amor à liberdade em tempo de obscurantismo político e de ausência de liberdades.

E foi neste contexto que, no jornal “The Observer” do dia 28 de Maio de há cinquenta anos, foi publicado por Peter Benenson o artigo “The forgotten prisoners” denunciando essas e outras situações similares, com o que se iniciou um movimento que, hoje, está presente em todo o mundo na defesa dos direitos do homem.

Em cinquenta anos, porém, o mundo mudou profundamente. Mas não acabaram as atrocidades contra a humanidade. Neste aspecto até quase nada mudou excepto, talvez, a visibilidade que actualmente lhes é dada e que a todos interpela, como nunca antes, à denúncia e à acção.

O respeito dos direitos do homem é um princípio fundador da legitimidade dos Estados e, por isso, não haverá Estado legítimo quando não se protejam adequadamente os direitos do homem, tanto a nível interno quanto internacional ainda que, neste último aspecto, o princípio da soberania dos Estados dificulte as melhores soluções (sobre este aspecto pode ver-se Andrew Altman e Christopher Heath Wellman, A Liberal Theory of International Justice).

Há contudo uma comunidade humana de valores que encontra a sua expressão no Direito internacional e que é preciso defender e incrementar. Decerto que o Direito não pode substituir-se à ética, mas também tem um poder que não tem a ética: o Direito pode contribuir para formalizar os valores pela via da função legislativa e pode implementá-los pela via das funções judiciária e executiva, bem como pode, também, revelar a existência de valores que a ética não consegue definir.

Eis um espaço de excelência para a intervenção dos defensores dos direitos humanos, designadamente a Amnistia Internacional, neste tempo opaco e líquido por que passamos. E é no âmbito dos crimes contra a humanidade que mais se impõe, hoje, tal defesa.

Na verdade, a humanidade não está só ameaçada por perseguições e destruições. Face ao progresso da ciência, muitos fantasmas de ontem serão realizáveis amanhã. Necessitamos, por isso, de uma definição de crimes contra a humanidade que tenha em conta os progressos científicos e técnicos e que permita proteger essas duas dimensões da humanidade que são a singularidade de cada ser humano e a sua pertença à comunidade. Só assim será possível denunciar como crime contra a humanidade qualquer comportamento, não só voluntário, mas sistemático e generalizado visando negar a singularidade dos indivíduos, o que incluirá a exterminação de populações reduzidas às suas características raciais, éticas ou genéticas, mas, também, a criação de seres humanos por clonagem – bem como negar a pertença desses mesmos indivíduos à comunidade humana, quer seja por práticas discriminatórias, pela criação de sub-homens por eugenismo ou por cruzamento de espécies.

Para além de tudo – e tanto tem sido – que a Amnistia Internacional tem feito em prol da defesa dos direitos humanos, abre-se agora um novo espaço de intervenção ao qual devemos prestar mais atenção e que deriva também do globalismo que impera no mundo.

Decerto que a defesa dos direitos do homem poderá levar a uma comunidade humana de valores mas convirá não esquecer que a sua compreensão actual não poderá permitir vê-los como respostas definitivas e intocáveis mas, antes, como algo em evolução e, logo, susceptível de outros e novos olhares.

E nestes novos combates nós somos, seremos, todos, da Amnistia Internacional

quarta-feira, 18 de maio de 2011

MUDAR

Precisamos de saber que Estado queremos – e, sobretudo, que Estado poderemos e queremos pagar.

Vivemos, no nosso país, num tempo crucial quer do ponto de vista económico-financeiro quer social.

Vilipendiados tantas vezes já por credores e seus apêndices internacionais e tutelados por organizações internacionais prestamistas, não poderemos adiar mais a tomada firme de decisões estratégias a longo prazo. E, em tempo de eleições, parece que não será pedir de mais aos partidos a elas concorrentes – e, também, à sociedade civil nas suas diferentes manifestações – que se ponham de acordo sobre as metas e os objectivos estratégicos que teremos de alcançar como nação independente e soberana.

Até agora é por demais evidente que tem faltado lucidez, coragem e vontade para tal aos que nos governam. Mas há que exigi-lo, doravante, e por todos os meios, pois adiar não é mais caminho. Não é possível aguentar mais um país político dividido por banalidades e crispado por lutas pessoais, tanto quanto apático e desconfiado, sem alma nem esperança, desmobilizado.

Urge discutir, pois, um novo modelo económico e social. E tal deverá ser feito por nós, portugueses, segundo os nossos interesses e de acordo com as nossas possibilidades e ambições, bem para além dos constrangimentos resultantes das imposições externas, nomeadamente do acordo a que se chegou com o Fundo Monetário Internacional, a Comissão Europeia e o Banco Central Europeu que, não obstante ter sido necessário, não resolve, no futuro, os nossos problemas estruturais. Que não haja ilusões: livram-nos das dores presentes, amainando-as, mas não curam as doenças antigas, que persistiram se não formos capazes de ir às causas dos nossos males.

Jean-Pierre Dupuy escreveu num livro recente – La marque du sacré (Editions Carnet, 2008)– que, para evitar as catástrofes, teremos que nos “projectar pelo pensamento no momento de pós-catástrofe e, olhando para trás em direcção do nosso presente, ver na catástrofe um destino – mas um destino que poderemos decidir afastar ainda a tempo”.

Os nossos problemas estruturais têm sido, de certo modo, uma catástrofe. Apesar de mil diagnósticos e de outras tantas propostas de solução há uma maldição qualquer que impede o país de os esconjurar.

Carecemos de pensamento estratégico para nos projectarmos no futuro após a crise, olhando o passado, decerto, mas relevando as oportunidades que aí, também, existem. E tudo dentro de uma cultura política negocial que é o que os partidos políticos menos prezam na sua ânsia de capturar o interesse nacional em benefício de si próprios e dos seus prosélitos. Aqui entra o debate das funções do Estado, tão ignorado pelos políticos, mas decisivo para o nosso destino colectivo. Precisamos de saber que Estado queremos – e, sobretudo, que Estado poderemos e queremos pagar. Não haverá mais lugar, no futuro, para um Estado paternalista, pouco exigente, tipo “poço sem fundo” disponível para todos os caprichos.

Não ignoro que o tema é fracturante, mas a verdade é que os portugueses não estão preparados para o inevitável convívio com uma sociedade em que as benesses arbitrarias do Estado não podem ter mais lugar. E nisto não vai um adeus ao Estado social (Cfr. João Carlos Loureiro, Adeus ao Estado Social? - A Segurança Social entre o Crocodilo da Economia e a Medusa da Ideologia dos " Direitos Adquiridos", Coimbra Editora, 2010), mas um apelo à honra e à dignidade, antes de mais (não viver à custa do sacrifício ou dos bens alheios) e, depois, uma chamada à realidade (só podemos gastar aquilo que conseguimos ganhar).

Ter-se-á que mudar mentalidades e hábitos.

Haverá que fazer um ingente esforço para erradicar a corrupção.

Urge denunciar o “chico-espertismo” que grassa na sociedade.

O triunvirato, controleiro, que nos veio pôr a mão em cima ocupou, afinal, o espaço que o nosso desleixo e a nossa apatia de longa data lhe proporcionaram. Um espaço político-ideológico, também, espaço em branco, que os políticos não souberam ocupar ou, então, quiseram voluntariamente conceder-lhe.

Longe vão os traços de um projecto social democrata para Portugal derrotado pelos neoliberais internos e do exterior. Contudo creio bem que é na ordem político-ideológica de uma renascida social-democracia que o país poderá encontrar um quadro de organização política e social adequado ao que somos como portugueses. E, sempre, sempre através de mais democracia, melhor democracia.

quarta-feira, 11 de maio de 2011

O PODER DOS NÃO ELEITOS

A questão fundamental que se nos impõe é se a dependência crescente das sociedades democráticas modernas face a entidades não eleitas apresenta, ou não, um novo perigo para a democracia.

A actividade e o poder de decisão da chamada “troika”, que acompanhou e deliberou recentemente sobre múltiplos aspectos do nosso futuro como sociedade que pretende ser livre e democrática, coloca-nos a questão da falta de democracia de muitas organizações internacionais neste tempo de globalismo.


Entidades não eleitas, tais como bancos centrais pretensamente independentes, reguladores económicos, agências de notação financeira, gestores de risco e auditores, tornaram-se um fenómeno global. As democracias estão cada vez mais a recorrer a estas entidades para demarcar os limites entre o mercado e o Estado, para resolver conflitos de interesses e para atribuir recursos, mesmo em áreas eticamente delicadas como aquelas que envolvem a privacidade e a biotecnologia.


Ponto é saber se tal não coloca a democracia em perigo.


Nas democracias modernas, as entidades não eleitas tomam muitas das decisões políticas que afectam a vida das pessoas, resolvem conflitos cruciais de interesses para a sociedade, solucionam disputas acerca da atribuição de recursos e fazem, até, mesmo, julgamentos éticos em algumas áreas delicadas. Por oposição, os políticos eleitos parecem, muitas vezes, mal preparados para lidar com a complexidade dos temas políticos.


A emergência dos poderes não eleitos está a espalhar-se pelo mundo democrático. Tomam diferentes formas legais e nomes diversos sendo que a variedade de formas e a terminologia oculta o crescimento da sua importância.


A questão fundamental que se nos impõe é se a dependência crescente, das sociedades democráticas modernas, face a entidades não eleitas apresenta, ou não, um novo perigo para a democracia. (cfr. Frank Vibert, The rise of the Unelected, Democracy and the New Separation of Powers, Cambridge University Press, 2007).


Vejamos o caso português em 2011. O pacote de medidas que o FMI, o Banco Central Europeu e a Comissão Europeia impuseram ao país vai exigir uma profunda remodelação da organização do Estado e afectará extensa e dramaticamente a vida de muitos cidadãos. Já antes o mesmo decorreu dos pronunciamentos das agências internacionais de rating do que todos conhecemos as consequências. Neste âmbito é de sublinhar – e desejar sucesso – à queixa apresentada por um grupo de cidadãos à Procuradoria Geral da República contra tais agências no sentido de as responsabilizar por, porventura, além do mais, favorecerem a especulação financeira e lucrarem, depois, com esta. A questão, porém, permanece: e a democracia poderá sobreviver a esta invasão de poderes não eleitos (não democráticos, diria) por um país adentro?


A análise desta problemática implica com a noção de democracia, uma ideologia e um regime político de difícil e complexa caracterização. Sem negar a sua ambiguidade e ambivalência, é seguro que a democracia tem a ver com a protecção dos direitos individuais face ao Estado (corrente anglo-saxónica) e com o governo da maioria, da vontade geral (Rousseau). Tudo isto é nada, porém, face aqueles sobreditos poderes e à sua acção concreta. Parece legitimo falar, pois, em suspensão da democracia neste tempo português, e nem as eleições, que se avizinham, mudam algo a este cenário. Como disse uma voz sarcástica da política portuguesa “quem paga é que manda” ao que acrescentaria, por minha parte, que votar é, neste transe, uma atitude ilusória perante o quadro de imposições que já pesam sobre o país.


Votar para quê? Votar para escolher o quê? Votar para mudar o quê?


Seria útil que todos nos detivéssemos na análise da situação vigente no país e nas alternativas que existem para tomarmos em mãos o nosso futuro sem qualquer tutela.


Costuma dizer-se que “quem não tem dinheiro, não tem vícios”. A democracia não é, porém, um vício, mas, antes, um modo de se ser pessoa, ou o único, mesmo. Quando ela se vai, ou se suspende, com ela esvai-se a honra, a dignidade e a solidariedade nacional.


Triste vão os tempos.

sexta-feira, 6 de maio de 2011

O ENIGMA DO TRABALHO

Uma empresa sem trabalhadores, substituídos por máquinas, é, decerto, bem mais lucrativa para os seus donos. Mas é por aí que passa o fim de uma civilização.

O que vou contar aconteceu-me há dias e não me chegou por interposta pessoa – sou, pois, testemunha directa. E o que contextualiza este retrato é que merece alguma reflexão crítica, porventura no sentido da argumentação a favor de um outro paradigma económico diferente daquele em que vivemos.


Que aconteceu? Na singeleza dos factos começou com uma avaria no meu sistema de recepção de televisão por satélite. Daí que tenha marcado o número da ZON que pretensamente me poderia ajudar. Ora, após ter seguido os vários procedimentos que me eram sucessivamente ditados mecanicamente por uma voz ausente e não dialogante, alguns minutos mais tarde essa voz de plástico disse-me finalmente que estavam muito ocupados na altura e que mais tarde seria contactado. Tive que me conformar aos ditames da máquina pois não havia alternativa. Cerca de doze horas passadas a máquina, então, lembrou-se de mim, ligou-me e, obediente, voltei a cumprir os procedimentos que me eram determinados desse outro mundo. O que não podia adivinhar é que, concluída outra vez a “via-sacra” dos procedimentos – marque aqui, marque ali – a resposta final fosse, de novo, que estavam muito ocupados… e que ligasse mais tarde.


O sistema da televisão contínua obviamente avariado. A ZON enlouqueceu!


Ora é desta loucura, comum a tantas outras situações empresariais, que é preciso cuidar.


As novas tecnologias e as inovações organizacionais que, sem ter em conta o direito humano ao trabalho decente, prescindem de pessoas (trabalhadores) em busca de mais lucro através da máquina estão a destruir as sociedades capitalistas, a sua economia e, sobretudo, as relações do homem com o trabalho a um ritmo de verdadeira calamidade. De um lado assiste-se ao aumento do desemprego e, por outro, à precarização do emprego existente, sem falar, já, da não criação de empregos novos. E, por vista disto, é previsível o desastre económico e social que se aproxima mas a que não se dá a devida atenção (ver, a propósito, David Harny, O Enigma do Capital, - sobretudo p. 72 ss).


Uma empresa sem trabalhadores, substituídos por máquinas, é, decerto, bem mais lucrativa para os seus donos. Não tem, desde logo, os inerentes encargos para a Segurança Social e outras alcavalas que as leis laborais e sociais impõem às que tenham trabalhadores ao seu serviço. Por isso vale a pena pôr a máquina no lugar do homem. Mas é por aí que passa o fim de uma civilização, também.


Agora que se está perante uma crise profunda, seria, pois, de pensar em criar mecanismos legais que, com justiça, obrigassem essas empresas de capital intensivo a pagar o devido à Segurança Social como se tivessem trabalhadores ao seu serviço, assim se criando condições para impedir, designadamente, esse brutal aniquilamento do mundo do trabalho e do cortejo de desgraças que vem atrás.


O lugar do trabalho nas nossas sociedades é decisivo para todos. Bastará ver, na verdade, a angústia das pessoas a quem falta ou que perdem o emprego para medir-se tal importância. O trabalho não se reduz a um mercado; é mais, ou vai além (é diverso) de um objecto de partilha. Inscreve-se no tempo e no espaço de uma vida. Numa perspectiva religiosa, católica, João Paulo II, já afirmara que “A Igreja está convencida de que o trabalho constitui uma dimensão fundamental da existência do homem sobre a terra. Confirma-a nesta convicção a consideração de todo o património das múltiplas ciências centralizadas no homem: a antropologia, a paleontologia, a história, a sociologia, a psicologia, etc. Todas elas parecem testemunhar de modo irrefutável essa realidade (…)” acrescentando “(…) mediante o trabalho, o homem não somente transforma a natureza, adaptando-a às suas próprias necessidades, mas realiza-se também a si mesmo como homem e até, em certo sentido, se torna mais homem.”


Desafia-nos, por tudo isto, uma outra perspetiva sobre a relação do homem com o trabalho no novo mundo que temos de construir. E, agora que tudo parece ter voltado ao princípio, neste tempo de crise e de sacrifício, seria grave esquecer a pessoa do trabalhador na sociedade que aí vem.


Há que reflectir. E agir depressa.

quinta-feira, 28 de abril de 2011

PRÓ DIVÃ DO PSICANALISTA

Para bem se compreender o tempo actual e olhar de frente o futuro há que assumir que é imperioso voltar a tecer, entre todos, os laços sociais que o individualismo destruiu.

A actividade político-partidária arrasta-se penosamente nos nossos dias amordaçada, também, pelos novos senhores que vieram militarizar o país (é preciso ter topete para se falar, no caso, em ajuda!) enquanto a política perdeu espaço e parece perder convicções. Aqui chego ao reparar que, para analisar a vida do país, são cada vez mais os sociólogos que são chamados a pronunciar-se após ter passado, creio, o tempo hilariamente dos economistas que, afinal, comprovaram, no tempo de antena imenso que tiveram, que a crise em que vivemos é demasiado grave para que lhes seja confiada qualquer responsabilidade – acertaram sempre nas estrelas à segunda-feira mas, à sexta, não ditaram mais do que diagnósticos vagos e palpites aleatórios repetindo-se, aliás, uns aos outros até à exaustão.


Vou mais além. Parece que já não poderemos mais prescindir dos psicólogos e psiquiatras para analisar o dia-a-dia tantas são as psicopatias que emergem da boca dos que não sabem, ou não podem, manter-se no espaço público dignamente calados. Talvez, de resto, toda a sociedade portuguesa tenha de se deitar, mais tarde ou mais cedo, no divã do psicanalista.


Admiro, contudo, os que teimam em lutar, que se não deixam abater, que não passam os dias na maledicência, que acreditam. Aqueles que, na senda de Platão (o filósofo-rei) prezam e cultivam ideais, a justiça, o bom e o belo, mesmo quando deixam, por vezes, de lado, a realidade. Pelo contrário, não estimo o “conselheiro do Príncipe” que não tem ideais ou os sacrifica ao que se diz ou pretende ser a realidade, a eficácia e o sucesso a qualquer preço – ditos maquiavélicos.


Platão ou Maquiavel?


Este dilema está subjacente às narrativas políticas deste tempo pré-eleitoral em que vivemos se vistas de um ponto de vista extremado, mas, quer a uma, quer a outra, falta a Política como doutrina ou ideologia. Se, a uns, ideologistas utópicos, falta uma percepção de vida e da tragédia que lhe é, tantas vezes, inerente, aos outros, realistas pragmáticos, falece a fé no Homem e nas suas aspirações maiores.


Entre estas duas perspectivas o caminho é estreito, pois não é fácil, ao mesmo tempo, pensar na realidade, procurar o sonho e, sobretudo, decidir o possível.


Agora que se soltaram os demónios da crise só há um caminho decente, o qual implica passar da teoria à prática, da filosofia à política. A situação actual é o que é e não o que desejaríamos que fosse, mas o futuro ainda nos pertence se não nos deixarmos hipotecar. Urge, para tanto, pôr um ponto final na costumeira desresponsabilização individual que temos cultivado até à exaustão e assumirmos que está em cada um de nós a possibilidade de, com os outros, vencer as dificuldades presentes. Não vale a pena pensar mais que o Estado, como, de certo modo, aconteceu no passado, estará sempre presente para suportar o individualismo desenfreado e ganancioso de muitos de nós.


Para bem se compreender o tempo actual e olhar de frente o futuro há que assumir que é imperioso voltar a tecer, entre todos, os laços sociais que o individualismo destruiu, no que vai todo um projecto de revolução cultural. Mas não haverá alternativa.


O F.M.I. e os seus acólitos não vão fazer o que a nós nos compete; não são salvadores generosos e despretensiosos do nosso país. Vai, pelo contrário, ficar muito cara mais esta intervenção e não podemos deixar-nos iludir a pretexto de se falar tanto em “ajuda”. Eles ajudam-se mas é a eles próprios e levarão até as nossas tripas se tal permitirmos. O que significa que nos cumpre exclusivamente a nós construir os alicerces de um outro modo de vida, decente e digno, em que vivamos do que ganhamos legitimamente e, não, gastando o que temos e o que não temos.

quarta-feira, 13 de abril de 2011

DIZER A VERDADE AOS PORTUGUESES

O que, hoje, os povos civilizados querem é saber os factos, mais do que o juízo de valor que sobre eles faz recair o fanatismo generalizado.

Os partidos, sobretudo os que se situam na oposição, alegam e criticam aos poderes instituídos, sobretudo ao Governo, a falta de verdade. O Governo esconderá a verdade, manipulará a realidade, falseará os dados económicos e financeiros do país, e por aí fora.


Primeira pergunta: e a oposição, apenas diz a verdade? Tem o dom da transparência, do realismo político, da infalibilidade quanto ao estado do Estado?


Segunda questão: mas o que é a verdade?


A minha compreensão, colhida, algures, num texto de LEVINAS, é que a verdade é a soma de todas as verdades. E nisso creio, sem ignorar que a mentira, por enfermidade psicológica ou conveniência política, alaga, porém, todo o espaço público desde há tempos imemoriais.


Parece-me ser de inteligência curta isso de gastar o tempo, hoje, à procura de culpados políticos para a situação actual, tanto quanto a permanente atribuição, recíproca, de responsabilidades quanto ao actual estado das coisas. É, afinal, a polémica do “quem lava mais branco” que, como não ignoramos, não leva a lado nenhum nem resolve o que quer que seja. Vende jornais e engana tontos, quando muito.


Fosse a magna questão portuguesa apenas a de se saber a verdade, a de identificar quem está a mentir ao povo! Não é, obviamente. E já me arrepia e revolta o arrastamento deste discurso espalhando-se, como azeite, na narrativa dos que pretendem ter o exclusivo da explicação do passado, do diagnóstico do presente e das chaves do futuro. Frases como “(…) era justo que os portugueses, por uma vez, soubessem com [sic] a verdade toda a real situação do país” (Expresso, 9 Abril 2011, Henrique Monteiro) são ridiculamente bacocas mesmo num país subdesenvolvido. E graves, escritas onde estão.


Defende-se, então, o culto da mentira?


Decerto que não.


O que, hoje, os povos civilizados querem é saber os factos, mais do que o juízo de valor que sobre eles faz recair o fanatismo generalizado. Os factos que lhes dizem respeito e o contexto em que os mesmos se inserem, bem como as consequências que deles poderão advir no futuro.


Na crueldade dos dias que passam poucos homens políticos – mesmo muito poucos – poderão atirar a primeira pedra. Contudo, andam pedras sem conta pelo ar vindas de todos os quadrantes e não se vê quem, com autoridade ética, possa pôr cobro a este destempero.


Não me reporto, no transe, à inopinada cambalhota política do Dr. Fernando Nobre, que apenas me parece revelar uma desmedida ânsia de protagonismo vinda de alguém que se pretendeu insinuar no espaço público como uma referência cívica categoricamente apartidária.


Afinal só os burros é que não mudam de ideias…


Também quero ignorar, aqui, a manipulada informação que os protagonistas trouxeram a público – Sócrates e Passos Coelho – a respeito do modo e local das suas conversas a respeito do chamado PEC 4.


Afinal são como mentiras de garotos sem consciência do que fazem…


O que me inquieta, porém, é que a noite cai e ninguém sabe o que será o dia de amanhã, se amanhã houver. O fanatismo partidário, ao serviço do qual está a mais incompetente classe política de que tenho memória, aponta para o pior dos cenários para Portugal. Se o dia-a-dia é o que se tem visto, e é a isso que se chama democracia, confesso que já estou na valeta do sistema e humilhado por ver o meu país vendido “democraticamente” a poderes sem rosto, a egoísmos esconsos, a caprichos e interesses inqualificáveis.


Será que ainda encontraremos forças para nos libertarmos – no nosso interior e face à adversidade externa – dos grilhões que já pesam demais sobre nós? A resposta, politicamente correcta, é a de que sim, havemos de conseguir. Mas a realidade parece desmentir tal resposta.


Vamos penar, e muito, os nossos pecados sem podermos, agora, bater mais a penitência no peito dos outros.


Amargo futuro, desditosa pátria!

quarta-feira, 6 de abril de 2011

ABRIL

Abril foi uma utopia a que é preciso voltar. Li, de um fôlego, num destes dias, um pequeno livro que encontrei, por acaso, nos escaparates de uma livraria e cujo título me chamou logo a atenção: INDIGNAI-VOS! Da autoria de Stéphane Hessel, um jovem de 93 anos, foi muito lucidamente prefaciado, de resto, por Mário Soares.

Um bom amigo, por outro lado, fez-me sinal quanto à publicação, em Espanha, de um outro livro cujo título é REACCIONA, coordenado por José Luís Sampedro e cujo sentido era o mesmo.

Stéphane Hessel, herói da Resistência francesa, escreve a certa altura o seguinte: “Os responsáveis políticos, económicos, intelectuais e a sociedade em geral não podem desistir, nem deixar-se impressionar pela actual ditadura internacional dos mercados financeiros que ameaça a paz e a democracia” (p. 22). E, no último livro referido, diz-se, além de muitas outras coisas, que, com a globalização, os poderes políticos abdicaram da sua função política a favor dos financeiros o que levou aos atuais défices e crises de todo o género, sendo que a crise financeira eclipsou dramaticamente as crises alimentar, energética, ecológica e outras, aí se acrescentando, também, que a humanidade avançou muito no campo das tecnologias, mas muito pouco em sabedoria e humanismo.

Foi como se tivesse caído num fogaréu e o semblante deve ter-se-me iluminado atiçado por tão simples e profundas leituras. Alguém, - refiro-me a Hessel - com uma vida longa e intensamente vivida entre momentos terríveis da história recente desta nossa civilização decadente, ainda mantinha a veia de combatente e, sobretudo, conseguia sensibilizar-nos num momento de desânimo generalizado. E outros, personalidades todas de maior relevo, afinavam pelo mesmo diapasão nesse outro livro.

Lembrei-me, então, de Abril.

De Abril de 1974 e de todas aquelas esperanças que fizeram estremecer os mais fundos escaninhos de um jovem universitário, que, então, era. E desejei voltar a Abril. Como Sofia, anseio, de novo, por poder dizer: Meu canto se renova/ E recomeço a busca/ De um país liberto/ De uma vida limpa/ E de um tempo justo (Esta Gente, Obra poética, II).

Abril foi uma utopia a que é preciso voltar.

Não, decerto, aos desvios e tentativas totalitárias que se lhe seguiram, mas à doce ingenuidade e à acrisolada esperança que suscitou em todos os que sonhavam com um destino diferente e melhor para Portugal. Não ignoro, decerto, quanto tantas prima-donas tentaram matar Abril, quantos jogos florais de política mesquinha o marcaram, quanta ânsia desmedida de poder aniquilou aquela esperança radiosa. Mas continuo fiel a Abril: continuo a acreditar que podemos ser melhores, mais solidários, mais ricos (no ter, no ser e no saber), mais felizes.

Ganhamos muito desde aquela data histórica, tanto quanto deitamos a perder mil possibilidades de novas primaveras e, hoje, andamos à deriva governados por poderes que não elegemos mas que são mais fortes que os eleitos.

Abril foi uma promessa de justiça assente em valores universais. Hoje, porém, sobrevivemos sem referencias éticas num processo de relativismo moral em que até a Justiça já pouco, ou nada, conta.

Acreditamos no Estado para além do que seria curial esquecendo a célebre e pertinente declaração de Bad Godesberg onde se dizia, a propósito, “tanto Estado quanto necessário, tanta iniciativa privada quanto possível”. E, nesse exagero, se reconstruiu a capital de um império que já o não era, se desertificou o resto do país e se matou a sociedade civil e a iniciativa privada. Resta, agora, um país quase insolvente, num Estado barrigudo e hemiplégico, forte com os fracos e fraco para com os fortes, um sistema político-partidário autofágico.

Sim, tenho saudades de Abril!

sexta-feira, 1 de abril de 2011

INDIGNAÇÃO, É PRECISO!

Contra os inimigos mercenários e predadores de fora, ou contra os desastrados políticos que ocupam e desbaratam o Estado que é o nosso, impõe-se um grito de indignação e revolta.


Acordei, um dia destes, a ouvir numa estação de rádio, que uma agência de notação financeira tinha cortado o rating da República Portuguesa em dois níveis e, concluía a jornalista, esta teria ficado perto de ser considerada lixo. E, nos dias seguintes, a mesma agência e as demais que pontificam na praça ainda foram mais longe nos cortes da nossa credibilidade financeira, segundo a imprensa também relatou.

O que era quase lixo já deverá, ser agora, lixo, pura e simplesmente.

Lixo?

Confesso amargura pelas notícias que chegam e maior indignação por ver o meu país como um caixote de lixo num contentor para onde foi atirado por gentes sem rosto e para quem nada mais vale do que o vil metal, ou seja, por oligarquias capitalistas transnacionais que aprisionam nas suas redes aqueles que, por alguma fragilidade, caíram no seu regaço, como este povo que tão grande foi já no passado, mas tem, hoje, o infortúnio de o não ser. A lei que impõe é a de que quem tem dinheiro come e vive e quem não tem é inútil, deve sofrer todo o tipo de sacrifícios e pôr-se a morrer, afinal.

Contra este dictat o meu desafio, pessoalmente assumido, é o de que se impõe uma verdadeira revolução económica, financeira e, até, social e a minha esperança é a de que já esteja a desenvolver-se uma nova e mais exigente sociedade civil, em Portugal e em outros países onde caíram os abutres e a sua arrogância insuportável. Basta de predadores que se alimentam imoral e ilegitimamente das dificuldades alheias, que acumulam dinheiro sem qualquer sentido, que destroem Estados sem piedade, que levam ao desespero milhões de seres humanos e, por detrás de tudo, cultivam a corrupção ao mais alto grau nos paraísos fiscais que criaram e controlam.

Há, por aí, verdadeiros pirómanos à solta com nomes pomposos e pretensamente respeitáveis – FMI, Banco Mundial, OMC e outros - acolitados por mercenários que a nossa falta de memória coletiva aceita como povos civilizados mas que, no fundo, levam no bojo outros holocaustos.

Precisamos de lutar, à nossa medida, por uma nova sociedade civil e uma nova e melhor democracia a nível mundial em que todos os seres humanos tenham o direito de viver em liberdade e igualdade com dignidade e direitos. Não podemos aceitar um mundo em que o domínio de certas instituições, sem legitimidade democrática, nos condenem às galés por maiores que sejam as nossas dificuldades.

Não ignoro que, como escrevia recentemente Daniel Bessa, o Estado português estará em processo de insolvência, com culpa de todos nós, de resto, e não só das desastradas políticas que nos têm governado, algumas, aliás, impostas por aqueles referidos predadores. Mas sei, de saber certo, que os portugueses, tendo tomado consciência do diagnóstico, das causas e das consequências da situação, serão capazes de dar a volta por cima e vencer, com maior ou menor esforço, hoje ou amanhã, as graves dificuldades com que se confrontam. Não somos povo que se ponha a morrer, mas poderemos não aguentar, em democracia, os golpes dos que nos queiram destruir.

Contra os inimigos mercenários e predadores de fora, ou contra os desastrados políticos que ocupam e desbaratam o Estado que é o nosso, impõe-se um grito de indignação e revolta.

Às armas, portugueses!

quarta-feira, 23 de março de 2011

PORTUGAL 2011

Não será o fim de Portugal que se avizinha em 2011, mas não será difícil diagnosticar também a falência cabal dos partidos no que toca às suas competências e funções numa sociedade democrática.

É por demais evidente que os partidos políticos agem, tácita e estrategicamente, neste tempo de crises, português, por razões que ignoram as suas ideologias (ou o pouco que delas resta) e o interesse nacional. Quem fixa a agenda política, ora o faz, de fato, por imposição externa (BCE, F.M.I., UE, agências de notação financeira), ou por razões internas decorrentes da avidez de conquistar o poder a qualquer preço. O mais são trapalhadas circenses e lavagem de roupa suja com o que nos vão tentando enganar e, sobretudo, anestesiar.

A situação externa, cujas consequências se abatem inequivocamente sobre o nosso país explica muito, mas não tudo o que vai acontecendo.

Os erros e indecisões do Governo, que são graves, também estão na origem de muito do mal estar vigente, mas não justificam, só por si, as crises.

O que os partidos visam, ontem como hoje, é, afinal, obsessivamente, manter o poder a qualquer preço, ou conquistá-lo sem olhar a meios. E assim vai, em declínio, este país. Até quando?

É, neste contexto, conveniente olhar com redobrada atenção as novas formas de contestação política, porventura insólitas, como aquela que reuniu, recentemente, a dita “Geração à rasca”. Nem partidária, nem contra os partidos, nem sindicalista nem doutrinária, não se erguia em volta dos chavões comuns às manifestações típicas do costume. Havia, ali, algo de inovador e, até, prometedor, sobretudo quando se tem presente o tipo de ações que os partidos – ou pretensos e pretensiosos líderes partidários – levam a cabo e que, afinal, não passam de procissões em que eles se alteiam no andor, mas, quanto ao regime, ao poder, à democracia, nem tocar-lhes. É que vivem deles e para eles e só por via deles, sendo que qualquer iniciativa “de fora” apenas lhes pode trazer incómodos e estragar a festança.

Não será, apesar de tudo o que está a acontecer, o fim de Portugal que se avizinha em 2011, mas não será difícil diagnosticar também a falência cabal dos partidos no que toca às suas competências e funções numa sociedade democrática. Estão, todos, corroídos pelo caruncho, em estado de apodrecimento acelerado, pouco mais significando já do que meras agências de emprego. E, com isto, vai-se degradando o ideal democrático enquanto, felizmente, começa a tomar feições o que alguns já têm designado por pós-democracia numa concetualização ainda, decerto, muito informe, mas já presente, também, em muitos espíritos.

Tenho por certo que é urgente uma profunda mudança qualitativa no país e a todos os níveis, mas começando pela organização do poder político e, sobretudo, no plano do sistema partidário.

Com governo ou sem ele, é inequívoco que a democracia em Portugal está em suspenso, em situação de grave indefinição, descaraterizada.

É certo que a democracia sempre se configurou como uma ideologia e um regime político de difícil apreensão e de contraditória aplicação em qualquer parte do mundo. Mas hoje, e entre nós, desceu a níveis de compreensão e de adesão muito perigosos. Bastará pensar no fato de uma maioria significativa de portugueses não participarem, sequer, nos atos eleitorais ou, participando, de formas diversas neles, manifestarem (por exemplo pela anulação do voto, ou pelo voto em branco) a sua repulsa – os que nem sequer vão às urnas, pelo regime, e, os outros, pelas escolhas que lhes são permitidas.

“Portugal 2011” poderá vir a marcar na história não só o fim dramático de um governo mas, o fim, também, de uma infeliz tradição democrática com quase duzentos anos durante os quais (incluídos os anos de ditadura) os cidadãos não foram titulares, senão formais, do direito de participação na organização democrática do Estado. Infeliz e inevitavelmente pela via, tipicamente nacional, do “desenrascanço” de uma recorrentemente “geração à rasca”. Desejavelmente pela implicação de elites que têm estado arredadas do poder hoje completamente capturado pelos partidos.

Todos querem a mudança, mas, poucos, os inerentes sacrifícios. E muitos, apenas, hoje, de novo, querem recuperar o seu lugar na pia.