quinta-feira, 19 de setembro de 2013

AS SOBRAS DE UM JANTAR E A SOLIDARIEDADE QUE FALTA

A cultura da liberdade foi uma conquista difícil e dolorosa. 
Destruí-la é muito mais fácil que foi construi-la.

Ao terminar um agradável jantar numa esplanada repleta de comensais, dei-me conta de que restavam, ainda, nas travessas, alimentos suficientes para uma outra refeição. Acontece que, ao levantar a mesa, o empregado do restaurante encavalitou pratos com restos, travessas com excessos e tudo o mais que FICARA do prazer da refeição. Amalgamou tudo, o supérfluo, o bom, e o inútil. Observei-lhe, então, que me parecia indecoroso esse tratamento uniforme e que seria conveniente aproveitar o que sobrava, imaculado, dando-lhe porventura uma utilidade solidária. Não …, não poderia ser, era proibido, replicou.

Uma vez mais se evidenciou, então, como neste tempo apocalíptico sabemos o preço de tudo, mas não conhecemos o valor de nada (cfr. Frank Ackerman e Lisa Heinzerling, Priceless, On Knowing The Price Of Everything And The Value of Nothing, The New Press, 2004).

A cultura da liberdade e do empreendedorismo, que vem já dos anos 1960 e trouxe às sociedades democráticas, é certo, grandes benfeitorias, levou, também, ao caminho da desregulamentação, da liberalização e da privatização, dinâmicas estas exponenciadas pelo ideário neo-liberal. O individualismo que se foi impondo paulatina mas radicalmente nesse contexto, também como estilo de vida – a cultura do “primeiro, eu!” – levou à situação crítica atual.

Não é só, porém, o individualismo reinante que ignora a solidariedade e o dever de partilha inscritos no destino humano. Um certo movimento higienista, com fundamentação séria e louvável – mente são em corpo são – foi entretanto desviado e engolido pelo crocodilo da economia (Cfr. Fiódor Dostoiévski, O Crocodilo, Estrofes e Versos, 2011), com o que interesses vários, difusos, puramente mercantis, vieram impor um fanatismo higienista sem limites e atingiram a vida privada de todos nós. Do tabaco ao álcool, esse fanatismo vai-se incrustando na sociedade face à passividade com que é aceite como bom.

Como em qualquer outro fanatismo – religioso, racista, ecológico ou ideológico – os fins justificam os meios e aí estão, consequentemente, proibições várias, penas fortes e fiscalidade convenientes convocados e impostos pelo novos “ayatollahs”. Sendo, alegadamente, por uma boa causa, tudo se justifica, designadamente o que deve ser, ou não, o comportamento de cada um. (…) “Ele desceu da montanha e, falando ao povo, disse: Anuncio-vos o Super-Homem, aquele que há-de dominar a terra” (Nietzsche, Assim falou Zaratustra).

A cultura da liberdade, património universal de todo o homem, foi uma conquista difícil e dolorosa, muitas vezes. Destruí-la é muito mais fácil que foi construi-la. Se o assistencialismo, que se vem instalando neste tempo em que o Estado social parece próximo do último suspiro, não é nada de bom, quando traz no bojo o austeritarismo de certos interesses, torna-se muito pior. Não é que a cultura do individualismo e da individualização seja melhor. A questão é que nesta conflitualidade se mata o Homem social e a solidariedade genuína.

As burocracias do Estado e os seus caprichos e interesses, próprios e assumidos de terceiros, não podem levar, por qualquer meio, a fins que se justifiquem socialmente.


Quem ficaria prejudicado, afinal, se aquelas sobras a que aludi no início desta crónica tivessem sido devidamente encaminhadas para alguém com fome? Ou não há fome em Portugal neste início tresloucado de um novo milénio?

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