A cultura da liberdade
foi uma conquista difícil e dolorosa.
Destruí-la é muito mais fácil que foi
construi-la.
Ao terminar um
agradável jantar numa esplanada repleta de comensais, dei-me conta de que restavam,
ainda, nas travessas, alimentos suficientes para uma outra refeição. Acontece
que, ao levantar a mesa, o empregado do restaurante encavalitou pratos com
restos, travessas com excessos e tudo o mais que FICARA do prazer da refeição.
Amalgamou tudo, o supérfluo, o bom, e o inútil. Observei-lhe, então, que me
parecia indecoroso esse tratamento uniforme e que seria conveniente aproveitar
o que sobrava, imaculado, dando-lhe porventura uma utilidade solidária. Não …,
não poderia ser, era proibido, replicou.
Uma vez mais se
evidenciou, então, como neste tempo apocalíptico sabemos o preço de tudo, mas
não conhecemos o valor de nada (cfr. Frank Ackerman e Lisa Heinzerling,
Priceless, On Knowing The Price Of
Everything And The Value of Nothing, The New Press, 2004).
A cultura da
liberdade e do empreendedorismo, que vem já dos anos 1960 e trouxe às
sociedades democráticas, é certo, grandes benfeitorias, levou, também, ao
caminho da desregulamentação, da liberalização e da privatização, dinâmicas
estas exponenciadas pelo ideário neo-liberal. O individualismo que se foi
impondo paulatina mas radicalmente nesse contexto, também como estilo de vida –
a cultura do “primeiro, eu!” – levou
à situação crítica atual.
Não é só, porém,
o individualismo reinante que ignora a solidariedade e o dever de partilha
inscritos no destino humano. Um certo movimento higienista, com fundamentação
séria e louvável – mente são em corpo são – foi entretanto desviado e engolido
pelo crocodilo da economia (Cfr. Fiódor Dostoiévski, O Crocodilo, Estrofes e Versos, 2011), com o que interesses vários,
difusos, puramente mercantis, vieram impor um fanatismo higienista sem limites
e atingiram a vida privada de todos nós. Do tabaco ao álcool, esse fanatismo
vai-se incrustando na sociedade face à passividade com que é aceite como bom.
Como em qualquer
outro fanatismo – religioso, racista, ecológico ou ideológico – os fins
justificam os meios e aí estão, consequentemente, proibições várias, penas
fortes e fiscalidade convenientes convocados e impostos pelo novos
“ayatollahs”. Sendo, alegadamente, por uma boa causa, tudo se justifica,
designadamente o que deve ser, ou não, o comportamento de cada um. (…) “Ele desceu da montanha e, falando ao povo,
disse: Anuncio-vos o Super-Homem, aquele que há-de dominar a terra” (Nietzsche,
Assim falou Zaratustra).
A cultura da
liberdade, património universal de todo o homem, foi uma conquista difícil e
dolorosa, muitas vezes. Destruí-la é muito mais fácil que foi construi-la. Se o
assistencialismo, que se vem instalando neste tempo em que o Estado social
parece próximo do último suspiro, não é nada de bom, quando traz no bojo o austeritarismo
de certos interesses, torna-se muito pior. Não é que a cultura do
individualismo e da individualização seja melhor. A questão é que nesta
conflitualidade se mata o Homem social e a solidariedade genuína.
As burocracias
do Estado e os seus caprichos e interesses, próprios e assumidos de terceiros,
não podem levar, por qualquer meio, a fins que se justifiquem socialmente.
Quem ficaria
prejudicado, afinal, se aquelas sobras a que aludi no início desta crónica
tivessem sido devidamente encaminhadas para alguém com fome? Ou não há fome em
Portugal neste início tresloucado de um novo milénio?
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