O sonho de muitos
seria o de um Direito submisso à economia e à finança – aomercado livre, rei e
senhor de tudo e de todos.
De modo ingénuo
e gratuito, Passos Coelho, na condição de primeiro ministro de Portugal, pôs em
causa o regular funcionamento das instituições democráticas ao pronunciar-se
sobre o Acórdão do Tribunal Constitucional que declarou inconstitucionais
várias normas do O.E. 2013.
Um estadista
diria, quando muito: não concordo, mas
respeito – porque perceberia, de antemão, as ondas que quaisquer outras
palavras provocariam no espaço público (como provocaram). E foi um ato gratuito
porque o Governo (ainda) não manda no Tribunal Constitucional e, por isso, não
teve consequências sobre as decisões deste tribunal.
A política, como
ideologia e combate, terá vencido, mas a arte de fazer política ficou para
trás. E em tempos de crise é, porventura, o que mais falta faz.
Há que
reconhecer, porém, que o Governo mantém a coerência da sua estratégia à qual,
expressivamente, Vítor Gaspar, o governante da tabuada, veio trazer os
pertinentes “esclarecimentos” com o inefável despacho onde proíbe novas, várias
despesas do Estado sem sua autorização prévia. Vale a pena atentar nestas importantes
afirmações: “a) Que cada ministério se
compromete a limitar e a organizar os seus serviços dentro da verba global que
lhes seja atribuída pelo Ministério das Finanças; b) Que as medidas tomadas
pelos vários ministérios, com repercussão directa nas receitas ou despesas do
Estado, serão previamente discutidas e ajustadas com o Ministério das Finanças;
c) Que o Ministério das Finanças pode opor o seu «veto» a todos os aumentos de
despesa corrente ou ordinária, e às despesas de fomento para que se não
realizem as operações de crédito indispensáveis; (…)”.
É evidente que
assoma aqui a tentação de um certo determinismo económico e jurídico. A crise
financeira justificaria tudo e os governantes não teriam limites jurídicos
(constitucionais) a respeitar na sua ação. Ora é preciso que a sociedade civil,
para não ficar sem o que ainda resta do princípio democrático em Portugal,
resista a este determinismo. O sonho de muitos – no Governo, na banca, nas
empresas – seria o de um Direito submisso à economia e à finança – ao mercado
livre, rei e senhor de tudo e de todos. E, também, de um Tribunal
Constitucional situado ao nível dos partidos políticos e dialogando com os seus
interesses. Felizmente que tal (ainda) não aconteceu e o Tribunal
Constitucional esclarecidamente afirmou a sua independência e o vigor
conveniente à defesa da nossa Constituição. Mesmo que o merecimento do dito
acórdão (200 páginas, Professor Marcelo!) deixasse a desejar aqui ou ali,
jamais deveria ser vilipendiado como o foi pelo PSD (o CDS/PP onde anda? Alguém
o viu por aí?).
Temos Estado de
Direito, pois, para além da dívida e do défice.
O que ficou em
crise foi, sem dúvida, o regular funcionamento das instituições democráticas.
Nesta situação caberia ao Presidente da República, nos termos do artigo 195º nº
2 da Constituição demitir o Governo. Mas o que significa “regular funcionamento
das instituições democráticas”? Decerto que não interesses pessoais ou
partidários, mas situações, contingências ou acontecimentos em sentido
jurídico-constitucional graves (cfr. J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira,
Constituição da República Anotada, 4ª ed., II, p. 464 ss.). Estes autores,
entre os exemplos que apontam, não se referem ao conflito entre o Governo e o
Tribunal Constitucional. Talvez não o admitissem possível em regime
democrático… Certo é, porém, que o que se passou e foi dito pelo Governo, antes
e depois do conhecimento do Acórdão do Tribunal Constitucional nº 187/2013, é
um mau prenuncio para o futuro, designadamente para a independência – e tudo o
que ela significa em democracia – de um Tribunal Constitucional.
P.S.: Já
concluída esta crónica, verifiquei que as afirmações que acima referi,
pretensamente do atual Ministro das Finanças, são, afinal, do Doutor Oliveira
Salazar (ver Diário de Notícias de 28 de abril 1928) naquele célebre discurso
em que esclareceu: “Sei muito bem o que
quero e para onde vou”. Não indo já a tempo de corrigir o texto, deixo ao leitor
o cuidado de encontrar as diferenças…
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