Mas não nos agrilhoem numa austeridade que não passa de um expediente
para nos roubar os nossos bens e a nossa vida.
O comboio a vapor
que passava entre os pinheiros na terra da minha mãe é uma das imagens mais
fortes que guardo da minha infância austera, pobre. Também dos sinos da igreja
tenho lembranças; de quando repicavam a chamar para a oração, novos e velhos,
viúvas e órfãos, vestidos a “rigor” na penúria mais extrema dos que nada tinham
a não ser a felicidade de viverem em solidariedade campesina e com fé no
Destino. E também quando tocavam a dobrar e eu ficava assustado no desconforto
daqueles sons que não sabia para aonde iam e quem os manipulava. Já então tinha
cá dentro, nos escaninhos de mim, os dilemas do resto da vida. Só que não sabia
dar-lhes nomes e, com medo, tremia.
Uma vez, acordei
estremunhado a altas horas da noite, com os sinos a gritar por auxílio. À minha
volta já corriam, pela “casa” onde vivia vultos apressados, e ouviam-se gritos
e suspiros, quando percebi que tinha havido uma “desgraça” (era o que se dizia)
e o povo estava a ser convocado para acudir. Furando entre as pernas dos
adultos estremunhados como eu, vi, ao longe, entre muita gente triste, uns
faróis com uma luz mortiça que, depois, percebi que era um desconjuntado carro
de bombeiros. Vinha acudir.
Evoco estas
singelas memórias porque, ao ler um jornal de fim de semana, o relato da morte
de cinco homens num poço, em
Vilela Seca , Chaves, me levou até lá, a esse meu tempo de
vésperas de difícil luta pela simples sobrevivência dos meus. Dizia assim a
notícia: “Quem deu o alerta foi a nora de
um dos empregados agrícolas. Ao aperceber-se da tragédia, a mulher veio a
correr a Vilela Seca gritando para que alguém tocasse os sinos a rebate e
juntasse a população para ir ajudar. Os primeiros que chegaram ao local ainda
tentaram destapar completamente a entrada do poço com um trator, mas já pouco
puderam fazer.” (…) Sábado, oito de setembro de 2012.
A história, ao
contrário do que alguns defendem, não é uma progressão continua para a prosperidade.
Seja o homem, por natureza, bom (mito do bom selvagem de Rousseau) ou mau (homo
homini lupus, Hobbes), nada do que foi civilizacionalmente adquirido é
definitivo. A luta pela cidadania tem de ser ativa, constante, coletivamente
assumida, do nascer ao pôr do sol.
Portugal está a
fenecer. Não é, decerto, a primeira vez que os deuses, face aos homens deste
canto da Europa, se revoltam. Mas o tempo que vivemos é já de tragédia que
tende a agravar-se exponencialmente. Dizia um pai, há dias, na antena de uma
rádio (cito de cor): Não aguento mais. No
dia em que não tiver comida para dar à minha filha saio à rua eu mato-os.
Os sinos dobram
por nós – os que vivemos a vida com o suor do nosso trabalho e não recebemos
comissões nos concursos públicos, nem temos contas em “off-shores” criminosas.
E dobrarão com mais intensidade quanto mais nos resignarmos aos poderes que dizimam,
sem escrúpulos, o nosso quotidiano.
Há uma saída
possível. Que os sinos toquem a rebate mas para nos acordar desta modorra em
que andámos.
Precisa-se de
cidadania ativa, o que implica que cada um saia da sua área de conforto (cada
vez mais restrita) e deixe de ser cobarde perante esta imensa fraude que se
trata como austeridade.
Será que aqueles
que punem os portugueses – através, também, de outros portugueses! – por serem
gastadores e trabalharem pouco para o seu nível de vida, são exemplo a seguir?
Regressemos à
austeridade, sim. De costumes, de regras honestas de conduta, de valores, de
dignidade humana, de justiça social. Mas não nos agrilhoem numa austeridade que
não passa de um expediente para nos roubar os nossos bens e a nossa vida.
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