quinta-feira, 24 de janeiro de 2013

CRÓNICA BREVE DE UM ENCONTRO FORTUITO



O mundo em que vivemos despreza a honestidade, castiga o trabalho, recompensa 
a falta de escrúpulos, alimenta o canibalismo.


Cumpre esclarecer, antes de mais, que esse encontro … foram, afinal, dois – melhor, dois em um - embora os meus interlocutores usem o mesmo apelido, Espírito Santo.

Um encontrei-o encafuado entre uns cobertores imundos, deitado na escadaria do meu prédio, entre garrafas desabitadas já de qualquer esperança. Uma côdea de pão, rapada, foi o que me levou à conversa. “Tem fome?”. O outro, entrou-me pela casa dentro – aliás é habitual frequentador da minha intimidade – através das ondas anestesiantes das televisões. Não me deixou falar e debitou palavras, palavras e mais palavras em resposta a pergunta nenhuma. “Porque não se cala?” (era a pergunta que queria fazer-lhe mesmo arriscando o meu futuro).

O Espírito Santo que, julguei eu, teria fome e frio, contou-me, (faltavam-lhe na boca tantos dentes que tive que adivinhar restos de muitas frases) que vivia na rua há anos entre muitas pernoitas nas cadeias construídas – como é que ele o sabia? – com os dinheiros de um outro Espírito Santo que ele, porém, não sabia quem era. Eu que perguntasse, porque toda a gente o conhecia…

Dois homens, duas vidas, a desigualdade absoluta. Portugal 2013.

O mundo está virado de pernas para o ar, conclui ao pensar nestes encontros fortuitos. Lembrei-me, então, de Galeano e do seu famoso livro “Patas Arriba, La Escuela del Mundo al Revés” onde constata o que cada um de nós também poderia dizer: o mundo em que vivemos despreza a honestidade, castiga o trabalho, recompensa a falta de escrúpulos, alimenta o canibalismo. “Cuando un delicuente mata por alguna deuda impaga, la ejecución se llama ajuste de cuentas; y se llama plan de ajuste la ejecución de un país endeudado, cuando la tecnocracia internacional decide liquidarlo. (…) La economía mundial es la más eficiente expresión del crimen organizado. Los organismos internacionales que controlan la moneda, el comercio y el crédito pratican el terrorismo contra los países pobres, y contra los pobres de todos los países, con una frialdad profesional y una impunidad que humillan al mejor de los tirabombas.” (ob. cit., 7ª ed., p. 13-15).

Não tenho soluções na manga para sugerir, mas sei, profundamente sei, que assim não podemos seguir. O lixo e o luxo não podem coabitar mais rasgando o essencial da condição humana.

O capitalismo financeiro, por vezes virtual, é “o que está a dar”. Leva à constituição de fortunas infinitas e, ao mesmo tempo, entope as valetas por onde corre a miséria humana. Era conveniente que alguns senhores do mundo tivessem mais cuidado na destruição física, social e psicológica a que estão a levar muitos, quase todos. E que os da política se desamarrassem dos cadeados da economia e da finança que os tolhe… e de que, por vezes, sobrevivem hipocritamente, até.

Acompanhei, também profissionalmente como advogado, o caso BPN e não tenho dúvidas em considerar que ele é a expressão do crime financeiro organizado e apadrinhado politicamente. Para além de saber que, dos rendimentos que tiro do meu esforço diário de 12 ou mais horas de trabalho (muitas vezes sem conhecer o que é um sábado ou um domingo) o Estado me expropria escandalosamente uma parte substancial para dar aos que foram do BPN nada mais sei dos processos em curso. E adivinho que ninguém, jamais, saberá.

Entretanto os ilustres “engenheiros financeiros” que armaram a roubalheira continuam o seu caminho, cada vez mais poderosos e até famosos. E, porventura, já a preparar o próximo assalto.

Resta-me, neste resumo dos encontros com os Espírito Santo, que, afinal, foi tão breve que nunca mais terminará, perguntar, com o maior ingenuidade: porque não desconsiderar a personalidade jurídica do BPN (o real) e ir à personalidade “financeira” (às contas na Suíça, p. ex.) dos principias accionistas e clientes desse banco?

Alguém me pode responder?


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