quarta-feira, 8 de setembro de 2010

COM A MORTE NA ALMA

Vivo com a morte na alma perante tanta atrocidade e tão pouca justiça; tanta politização da justiça e tão precária aplicação do Direito.

Não sei, nem tenho que saber, se José Sócrates é inocente ou culpado nos tantos casos em que se tem visto embrulhado, mas já tenho a certeza, enquanto cidadão que vê, ouve e lê, que há para aí muita gente, de má índole e perseguindo interesses inconfessáveis, que se realiza na medida em que o procura destruir. A ele e a outros governantes ou responsáveis da nossa vida pública. E nisto não vai qualquer opinião político-partidária, mas uma avaliação cívica, cidadã, de jurista porventura, a respeito dessas múltiplas situações conflituosas que o têm envolvido e a que apenas dou, hoje, relevo quer porque não quero lavar as mãos, como Pilatos, relativamente a um grave tema recorrente da nossa vida pública, quer porque só se vê bem quando se guarda alguma distância e se deixa passar o tempo necessário para, com os olhos lavados, não se ser sectário. O que pretendi alcançar, no caso.

Sou advogado e, no exercício desta digna profissão, vivo com a morte na alma perante tanta atrocidade e tão pouca justiça; tanta politização da justiça e tão precária aplicação do Direito.

Confesso, pois, que não entendo – e será que alguém consegue entender? – que venham a público declarações de alguns do Ministério Público arrogante e medíocre que temos dizer o que lhes apetece, desenfreadamente, sobre titulares de órgãos de soberania, no espaço público, e completamente fora dos seus poderes e competências legais?

O Ministério Público goza de estatuto próprio e de autonomia, nos termos da lei, segundo estabelece a Constituição. Não goza, porém, de um estatuto de independência, neste momento – e ao contrário do que tanto pretendem alguns – ainda que, por vezes, ande por aí à rédea solta. A independência, recorde-se, é uma noção negativa que significa que, quem dela goze, não está sujeito a qualquer poder exterior. Ora o Ministério Público está sujeito a uma hierarquia que, por vezes, não se vê, ou porque não tem poder suficiente para enfrentar os lóbis sindicais que pululam no sector, ou porque simplesmente não quer exercer os poderes que tem. O que, em qualquer caso, é de lamentar já que deixa essa entidade em plena auto-gestão. E todos sabemos o que isso pode significar para o declínio da justiça e, até, da democracia.

É obvio que a censura que aqui – expressamente - se deixa ao Ministério Público vai no sentido de uma crítica livre de pensamento livre, tal como a ideia de censura, aliás, era entendida no século XVIII e não, como algo de vexatório.

O silêncio cúmplice dos operadores da justiça não é mais tolerável.

É preciso falar claramente, também sobre a Justiça.

É urgente perder o medo de certos togados.

É um imperativo ético denunciar conúbios político-judiciais, a judicialização da política e a politização da justiça.

Não se veja, nesta breve crónica, um retomar de factos e argumentos já esclarecidos e geralmente reconhecidos relativamente ao tristemente célere caso Freeport, mas, apenas, a intenção de olhar de outros sítios – porventura mais improváveis – a decadência política deste país, chamado Portugal, na área da Justiça.
Ao pretender-se, aqui, colocar algumas legendas neste filme, emerge, entre o demais, com dramático fulgor, a carência de recursos e capacidades do Estado português para assegurar uma função essencial da soberania moderna: a Justiça. E, com isto, vai ao fundo a relação de confiança que deveria ser preservada, a todo o custo, entre o poder político e a sociedade civil, aliás esta desde sempre frágil entre nós, mas, agora, cada vez mais moribunda.

Como vem nas palavras de Paneloux (Albert Camus, A Peste, Livros do Brasil, 2009, p. 89): «Meus irmãos, a desgraça caiu sobre vós; mereceste-la, meus irmãos» (…) «Se hoje a peste vos olha é porque chegou o momento de reflectir. Os justos não podem receá-la, mas os maus têm razão para tremer».

Temos a justiça que merecemos ou, pior, a que queremos – ou a que convém a alguns. O campo está minado por conflitos institucionais, muita incompetência profissional e mil interesses mesquinhos de certos poderosos da nossa praça. E a justiça não quer ou não sabe já lidar com as suas insuficiências e ineficiências curvada, também, ao peso dos mais ricos, dos mais fortes ou dos mais espertos. A sua legitimidade social nunca esteve tão degradada.

Chegou o momento de reflectir. E, sobretudo, de agir.

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