quarta-feira, 23 de julho de 2014

O FIM DOS ADVOGADOS?




O futuro da advocacia e os advogados do futuro estão condicionados pelas
transformações que ocorrem no globalismo presente.


Quando, há poucos dias, ao olhar a primeira página de um jornal de grande circulação, deparei com uma enorme fotografia em que, tendo por fundo o edifício da Assembleia da República, sobressaía uma advogada, ainda jovem, de toga vestida, a soprar num apito vermelho com o ar mais estúpido deste mundo, veio ao meu espirito, de imediato, o livro de Richard Susskind cujo título é “The End of Lawyers?” (Oxford University Press, 2008). E, mergulhado na vergonha que me invadiu ao ver tal fotografia, lembrei-me, também, do debate em curso em França à volta do corporativismo profissional, nomeadamente (sobretudo) dos advogados, no século XXI, numa nova sociedade e a urgência de lhe pôr cobro.

Sabe-se que os advogados estão em luta – bastaria, de resto, folhear o número 115 (junho 2014) do Boletim da Ordem dos Advogados onde, na capa, se destaca “ADVOGADOS EM LUTA” para ter uma prova definitiva dessa situação. E, decerto, terão muitas e fortes razões para o seu inconformismo e, até, revolta. Eu tenho. Mas não posso ignorar, também, a responsabilidade que é a nossa – dos advogados – pela situação caótica com que nos debatemos e, sobretudo, pela incapacidade geral de compreendermos que o mundo mudou, as instituições evoluíram, a economia e as tecnologias já não são o que foram, e que tudo marcou e condiciona o papel dos advogados.

Distraídos, egoístas, soberbos nos nossos fatos às riscas, nos nossos carros de alta cilindrada, nas nossas pastas de pele, muitos nos descuidamos na defesa dos cidadãos, da Justiça e do Estado de Direito. Entretanto invadiu o mercado uma juventude de juristas, tecnicamente mal preparados e economicamente descamisados, no contexto de uma sociedade líquida, em decomposição. (Valerá a pena ler, a propósito, Alain Touraine e o seu recente livro “La Fin des Sociétés”, 2013, Seuil).

A advocacia foi, paulatinamente, para muitos, deixando de ser uma profissão liberal para ser exercida subordinadamente num qualquer regime de prestação de trabalho. Adveio, então, o princípio do seu fim enquanto fenecia, ainda, a honra de ser advogado e o risco de o ser. Aqueles que, porém, não foram levados na enxurrada da proletarização da advocacia, de alguma outra forma, por arrastamento, viveram e vivem frequentemente num espaço de esquizofrenia coletiva em que nada vale e vale tudo sendo a Justiça e o Direito meras ilusões.

O futuro da advocacia e os advogados do futuro estão condicionados pelas transformações que ocorrem no globalismo presente. Lutar contra o “novo mapa judiciário” pode ser útil para alguns, mas, sobretudo, expressa a ignorância relativamente às grandes transformações do mundo da vida em que os advogados devem estar presentes.

Richard Susskind, no livro referido acima, perspetiva cinco tipos de advogados no futuro (p. 271 ss.). Realista ou utópica a sua análise, mereceria de qualquer modo, uma boa discussão entre os advogados e a preparação urgente dos caminhos a seguir.

Sei que tudo isto seria muito mais difícil do que andar, de apito vermelho na boca, a gritar contra um qualquer mapa judiciário. Mas aquele é o único caminho que poderá a vir a devolver aos advogados a dignidade perdida de servidores de Direito – em toda a dimensão da palavra – e a força ética e moral de defensores dos que não têm voz.

Já tive profundo orgulho em ser advogado. Oxalá que ainda vá a tempo de o recuperar. Mas por este andar, perante colegas de apito vermelho na boca, cada vez me sinto pouco mais que um mero sinaleiro atrapalhado no cruzamento de interesses que nada têm que ver com um Estado de Direito nem com o ser Advogado.

quarta-feira, 16 de julho de 2014

"ONDE ESTÁ O DINHEIRO?"



De país de brandos costumes, que não mata os toiros mas apenas os farpeia cristãmente, passamos a uma amálgama de indivíduos sem carácter para quem tudo vale e tudo tem perdão.

O vento que sopra há muito que não traz boas notícias para o país que somos. Às vezes até apetece, mesmo, pegar no vento e fugir deste lamaçal de intrujice e de pilhagem em que medra o poder e os seus cortesãos da finança à economia passando por labirínticas sinecuras politico-partidárias.

O “caso” do Grupo Espírito Santo – como pode um qualquer cidadão respirar neste nosso país sem se sentir por ele ética e politicamente asfixiado? – configura-se, aparentemente, como mais um caso de putativa associação criminosa. Os tribunais confirmá-lo-ão, ou não. Ou deveriam fazê-lo, mas…

Ora, ao abordar, no habitual estilo soap opera, a crítica situação ao redor do BES, o comentador político que neste país “lava mais branco”, foi interpelado pelo seu interlocutor no sentido de saber “Onde está o dinheiro?” – a pergunta que muitos, pelo menos eu, queriam ver respondida. Marcelo Rebelo de Sousa não respondeu e, até, fugiu expressamente à questão. Esta é, porém, a grande questão de todo este imbróglio político-financeiro a qual expressa o caos em que navega a vida pública portuguesa.

Não posso ignorar, como advogado interveniente em largas centenas de conflitos entre instituições bancárias e seus clientes, o facto de estes terem, num primeiro momento, sido seduzidos a consumir crédito dito a pataco. Tudo lhes era oferecido num inconsciente processo de endividamento cujos resultados têm vindo, desde 2008, à tona. Com a crise, instalada a austeridade (para alguns), a banca foi sempre, porém, acarinhada no espírito do neoliberalismo reinante. Enquanto os contratos que a envolviam com o poder político eram tidos por intocáveis, o cidadão comum viu os seus direitos, ainda que também contratualizados com o Estado – direito a pensões, retribuição e outros – serem destruídos pelo Governo da Troika ou a Troika do Governo.

Após esse momento de facilitismo, a banca, em geral, trocou a sedução pela reivindicação imoral do que alegadamente lhe pertencia e, então, iniciou-se o calvário, muitas vezes até ao último suspiro, de quantos haviam contraído empréstimos bancários. Insolvências sem fim e despejos sem limites foram, e ainda são, o preço que vai sendo pago por quaisquer empréstimos incumpridos.

Alguns banqueiros, em conúbio com interesses partidários inconfessáveis e seus servidores ou utilizadores, são responsáveis primeiros pelo desconcerto das finanças públicas. Muitos o sabem por experiência pessoal e, outros, por dever de ofício, mas ninguém tem coragem de ir ao âmago dos problemas e atacar o mal na raiz.

Se as autoridades seguissem o cherne, isto é, o itinerário dos dinheiros confiados e desbaratados por esses políticos-banqueiros apátridas talvez muito mais se viesse a saber sobre esta democracia folclórica em que nos debatemos sem um destino à nossa frente, com cada vez mais folclore e menos democracia.

De país de brandos costumes, que não mata os toiros mas apenas os farpeia cristãmente, passamos a uma amálgama de indivíduos sem carácter para quem tudo vale e tudo tem perdão. Venham mais uns milhões da UE e tudo o mais será esquecido.

Neste contexto é desolador, também, contemplar a passividade da Justiça. Lenta, incompetente (subtilmente desativada pelo poder executivo), mole, egoísta, já não é, como deveria ser, a esperança dos oprimidos.

Tudo isto é triste, tudo isto é fado!

quarta-feira, 9 de julho de 2014

DIPLOMACIA



A política externa francesa não será exemplar vista numa perspetiva histórica e crítica. Dizer-se, porém, que o oportunismo é a “imagem de marca da diplomacia francesa no mundo” é dar um salto mortal.


Devo adiantar que tenho muito apreço pela coragem e pela lucidez do Dr. Miguel Sousa Tavares assente, nomeadamente, em quanto tem escrito sobre a vida política num país em que proliferam, nesse ramo, muitos invertebrados. O pai – que conheci enquanto deputado na Assembleia da República – era da mesma fibra, de “antes quebrar que torcer”, e foi, para muitos, um exemplo invulgar de cidadão e de político. Para mim foi.

Ao ler a sua crónica “Uma política externa que nos envergonha” na última edição do Expresso (5 julho 2014), chocou-me, porém, como poucas vezes antes, aquela sua comparação entre a “política externa de países como a Suécia ou a Noruega ou a de um país como a França, onde noções como a ética, a justiça e a verdade são substituídas por um oportunismo e uma falta de princípios de toda a ordem, que são a imagem de marca da diplomacia francesa no mundo”.

Tal comparação é, desde logo, despropositada pois não se vê justificação para introduzir uma crónica – no demais pertinente -  com tão cortante afirmação. Aberratio delicti? – acidente ou erro na narrativa que levou a resultado diferente do pretendido?

Além disso é tão vaga, tão generalista, tão a-histórica que denota ignorância de momentos axiais da política externa francesa. Quantos enraizam o muito ou pouco que são na cultura francesa, como é o meu caso, não podem sufocar um grito de revolta perante tal declaração. E também aqueles que, nos anos sessenta do passado século, foram acolhidos em França em tempo de fome de pão e de liberdade em Portugal, decerto sentirão algo semelhante. Não havia necessidade, Dr. Miguel Sousa Tavares, de ter ido por onde foi ignorando, concomitantemente, países com política externa incomparavelmente mais acintosa e oportunista e de que nós, portugueses, fomos (somos) vítimas indefesas e humilhadas. Saiba que as suas palavras ofenderam, também, muitos portugueses dos quais não tenho procuração – nem de ninguém – para falar, mas que, creia, ficaram perplexos, incrédulos face à sua categórica afirmação.

As relações entre Portugal e França são um assunto muito sério e relevante. É inútil e perigoso, pois, tomar a nuvem por Juno, sobretudo num tempo de profundo declínio da Europa e dos valores que, ainda há pouco, nos irmanavam na construção europeia. De resto – e firmando-me no demais do seu texto – creio que não temos lições a dar a ninguém!

A política externa francesa não será, longe disso, exemplar vista numa perspetiva histórica e crítica, como a não será, nessa mesma perspetiva, a de qualquer outro Estado. Daí a dizer-se, porém, que o oportunismo é a “imagem de marca da diplomacia francesa no mundo” é dar um salto mortal, sobretudo quando não se fundamenta essa conclusão e, antes, se esconde a arrogância das palavras na pobreza do conhecimento concreto.

É costume dizer-se que por detrás de uma grande resposta há sempre uma grande pergunta. Qual é a sua grande pergunta (ou questão), Dr. Miguel Sousa Tavares?