Alguém
tem de sofrer. Nada melhor, então, do que os que sempre sofreram. Até
porque já estão habituados.
Vou reproduzir,
com a devida vénia, uns parágrafos de um livro luminoso (que ilumina) de Rui
Zink e que se chama “A instalação do medo”. Vem na página 124 (1ª ed. outubro
2012): “Era uma vez um rico cujo amigo
pobre passava a vida a sarraziná-lo por causa da sua fortuna, até que um dia o
rico se fartou e disse: olha lá, se dividíssemos a minha fortuna entre a população
inteira do país, quanto achas que dava a cada um? O amigo pobre não queria
responder, só que o rico insistiu. E lá acabou por dizer: sei lá, cinco ou dez
patacas.
Então o rico foi ao porta moedas e tirou dez
patacas. “Olha, aqui está a tua parte. Agora não me chateies mais”.”
Neste espírito –
estou convencido – vivem muitos neste tempo de austeridade. Uns, resignados,
escondem da sociedade as suas dificuldades. Outros, indignados, gritam a sua
revolta. Todos estão insatisfeitos.
Nem na pobreza
há consensos!
Nem na riqueza
há lucidez!
O tempo presente
não tem ideais. Não tem líderes, nem homens de Estado. Tudo são loucuras
vulgares de gente vulgar. Vivemos as nossas vidas como “vidas instantâneas” sem
estratégias de futuro. A política é apenas a “arte de furtar” muito e depressa
num tempo de pensamento líquido. Até a vida é furtada à nossa vida.
A “arte da fuga”
vai a par com a de furtar. Ninguém é responsável por nada – salvo os que sofrem
o castigo da Troika, esses irresponsáveis que andaram a gastar mais do que
podiam. Os políticos, do governo ou da oposição, não assumem qualquer
responsabilidade social passada, presente ou futura. A culpa morre sempre
solteira.
Alguém tem de
sofrer. Nada melhor, então, do que os que sempre sofreram. Até porque já estão
habituados.
A política do
medo tornou-se, por isso, numa forma dominante de governar levando ao
descomprometimento com quaisquer valores. Quem se move e age mais rapidamente
domina e quem não pode mover-se tão rapidamente é escravizado.
As notícias que
chegam do futuro deixam-nos arrepiados. Não há túnel, quanto mais uma luz ao
fundo do túnel! O mercado – os mercados – parece terem ganho a batalha. Nada
mais conta na era em que entramos. À nossa frente parece haver apenas deserto
onde todos os caminhos estão em permanente liquefação.
Não somos donos
do presente quando a democracia jaz e apodrece pelo mundo ocidental fora. E não
seremos senhores do futuro sem o poder económico e o poder social que já
escaparam às mãos dos políticos gasosos que nos capturaram. A inexplicabilidade
do presente e a inatingibilidade do futuro é tudo quanto têm para dar à
sociedade. Entretanto dizem governar a bem do interesse nacional e para criar
condições futuras de bem estar.
Alguém tem de
sofrer. Terá mesmo? E se esse sofrimento fosse partilhado por todos e, em vez
de levar – como está a levar – à implosão da sociedade, visasse a promulgação
de uma ordem nova e melhor?
O maior problema
da Europa (e de Portugal) é que não tem voz no mundo atual. Está entregue a uma
geração que nasceu e sempre viveu sem esforço num mundo dominado pela ficção científica.
Deles só há que esperar, um dia destes, que entoem o de profundis e regressem aos seus lugares de conforto. Afinal não
foi assim que fizeram os seus maiores e sem que, em geral, algo de mal lhes
tenha acontecido?
Eu recuso as dez
patacas.
E vou continuar
a chatear.