quarta-feira, 25 de maio de 2011

NOS CINQUENTA ANOS DA AMNISTIA INTERNACIONAL

Para além de tudo – e tanto tem sido – que a Amnistia Internacional tem feito em prol da defesa dos direitos humanos, abre-se agora um novo espaço de intervenção ao qual devemos prestar mais atenção e que deriva também do globalismo que impera no mundo.

Foi em 28 de Maio de 1961 que formalmente foi fundada a Amnistia Internacional pelo advogado britânico Peter Benenson pelo que ocorre, agora, a passagem do seu cinquentenário. É a organização não governamental que provavelmente mais se tem empenhado na defesa universal dos direitos do homem – e, só por isso, esta data justifica uma lembrança. Outra razão, porém, se levanta, aos olhos dos portugueses, para que se sublinhe o momento. É que os motivos que levaram Benenson a agir e a dar corpo à ideia dessa organização estiveram ligados à sua profunda inquietação pessoal perante o tratamento violento dado pela polícia política de Salazar e dos seus tribunais a dois estudantes portugueses que terão cometido o “horrível” crime de gritar, no espaço público, o seu amor à liberdade em tempo de obscurantismo político e de ausência de liberdades.

E foi neste contexto que, no jornal “The Observer” do dia 28 de Maio de há cinquenta anos, foi publicado por Peter Benenson o artigo “The forgotten prisoners” denunciando essas e outras situações similares, com o que se iniciou um movimento que, hoje, está presente em todo o mundo na defesa dos direitos do homem.

Em cinquenta anos, porém, o mundo mudou profundamente. Mas não acabaram as atrocidades contra a humanidade. Neste aspecto até quase nada mudou excepto, talvez, a visibilidade que actualmente lhes é dada e que a todos interpela, como nunca antes, à denúncia e à acção.

O respeito dos direitos do homem é um princípio fundador da legitimidade dos Estados e, por isso, não haverá Estado legítimo quando não se protejam adequadamente os direitos do homem, tanto a nível interno quanto internacional ainda que, neste último aspecto, o princípio da soberania dos Estados dificulte as melhores soluções (sobre este aspecto pode ver-se Andrew Altman e Christopher Heath Wellman, A Liberal Theory of International Justice).

Há contudo uma comunidade humana de valores que encontra a sua expressão no Direito internacional e que é preciso defender e incrementar. Decerto que o Direito não pode substituir-se à ética, mas também tem um poder que não tem a ética: o Direito pode contribuir para formalizar os valores pela via da função legislativa e pode implementá-los pela via das funções judiciária e executiva, bem como pode, também, revelar a existência de valores que a ética não consegue definir.

Eis um espaço de excelência para a intervenção dos defensores dos direitos humanos, designadamente a Amnistia Internacional, neste tempo opaco e líquido por que passamos. E é no âmbito dos crimes contra a humanidade que mais se impõe, hoje, tal defesa.

Na verdade, a humanidade não está só ameaçada por perseguições e destruições. Face ao progresso da ciência, muitos fantasmas de ontem serão realizáveis amanhã. Necessitamos, por isso, de uma definição de crimes contra a humanidade que tenha em conta os progressos científicos e técnicos e que permita proteger essas duas dimensões da humanidade que são a singularidade de cada ser humano e a sua pertença à comunidade. Só assim será possível denunciar como crime contra a humanidade qualquer comportamento, não só voluntário, mas sistemático e generalizado visando negar a singularidade dos indivíduos, o que incluirá a exterminação de populações reduzidas às suas características raciais, éticas ou genéticas, mas, também, a criação de seres humanos por clonagem – bem como negar a pertença desses mesmos indivíduos à comunidade humana, quer seja por práticas discriminatórias, pela criação de sub-homens por eugenismo ou por cruzamento de espécies.

Para além de tudo – e tanto tem sido – que a Amnistia Internacional tem feito em prol da defesa dos direitos humanos, abre-se agora um novo espaço de intervenção ao qual devemos prestar mais atenção e que deriva também do globalismo que impera no mundo.

Decerto que a defesa dos direitos do homem poderá levar a uma comunidade humana de valores mas convirá não esquecer que a sua compreensão actual não poderá permitir vê-los como respostas definitivas e intocáveis mas, antes, como algo em evolução e, logo, susceptível de outros e novos olhares.

E nestes novos combates nós somos, seremos, todos, da Amnistia Internacional

quarta-feira, 18 de maio de 2011

MUDAR

Precisamos de saber que Estado queremos – e, sobretudo, que Estado poderemos e queremos pagar.

Vivemos, no nosso país, num tempo crucial quer do ponto de vista económico-financeiro quer social.

Vilipendiados tantas vezes já por credores e seus apêndices internacionais e tutelados por organizações internacionais prestamistas, não poderemos adiar mais a tomada firme de decisões estratégias a longo prazo. E, em tempo de eleições, parece que não será pedir de mais aos partidos a elas concorrentes – e, também, à sociedade civil nas suas diferentes manifestações – que se ponham de acordo sobre as metas e os objectivos estratégicos que teremos de alcançar como nação independente e soberana.

Até agora é por demais evidente que tem faltado lucidez, coragem e vontade para tal aos que nos governam. Mas há que exigi-lo, doravante, e por todos os meios, pois adiar não é mais caminho. Não é possível aguentar mais um país político dividido por banalidades e crispado por lutas pessoais, tanto quanto apático e desconfiado, sem alma nem esperança, desmobilizado.

Urge discutir, pois, um novo modelo económico e social. E tal deverá ser feito por nós, portugueses, segundo os nossos interesses e de acordo com as nossas possibilidades e ambições, bem para além dos constrangimentos resultantes das imposições externas, nomeadamente do acordo a que se chegou com o Fundo Monetário Internacional, a Comissão Europeia e o Banco Central Europeu que, não obstante ter sido necessário, não resolve, no futuro, os nossos problemas estruturais. Que não haja ilusões: livram-nos das dores presentes, amainando-as, mas não curam as doenças antigas, que persistiram se não formos capazes de ir às causas dos nossos males.

Jean-Pierre Dupuy escreveu num livro recente – La marque du sacré (Editions Carnet, 2008)– que, para evitar as catástrofes, teremos que nos “projectar pelo pensamento no momento de pós-catástrofe e, olhando para trás em direcção do nosso presente, ver na catástrofe um destino – mas um destino que poderemos decidir afastar ainda a tempo”.

Os nossos problemas estruturais têm sido, de certo modo, uma catástrofe. Apesar de mil diagnósticos e de outras tantas propostas de solução há uma maldição qualquer que impede o país de os esconjurar.

Carecemos de pensamento estratégico para nos projectarmos no futuro após a crise, olhando o passado, decerto, mas relevando as oportunidades que aí, também, existem. E tudo dentro de uma cultura política negocial que é o que os partidos políticos menos prezam na sua ânsia de capturar o interesse nacional em benefício de si próprios e dos seus prosélitos. Aqui entra o debate das funções do Estado, tão ignorado pelos políticos, mas decisivo para o nosso destino colectivo. Precisamos de saber que Estado queremos – e, sobretudo, que Estado poderemos e queremos pagar. Não haverá mais lugar, no futuro, para um Estado paternalista, pouco exigente, tipo “poço sem fundo” disponível para todos os caprichos.

Não ignoro que o tema é fracturante, mas a verdade é que os portugueses não estão preparados para o inevitável convívio com uma sociedade em que as benesses arbitrarias do Estado não podem ter mais lugar. E nisto não vai um adeus ao Estado social (Cfr. João Carlos Loureiro, Adeus ao Estado Social? - A Segurança Social entre o Crocodilo da Economia e a Medusa da Ideologia dos " Direitos Adquiridos", Coimbra Editora, 2010), mas um apelo à honra e à dignidade, antes de mais (não viver à custa do sacrifício ou dos bens alheios) e, depois, uma chamada à realidade (só podemos gastar aquilo que conseguimos ganhar).

Ter-se-á que mudar mentalidades e hábitos.

Haverá que fazer um ingente esforço para erradicar a corrupção.

Urge denunciar o “chico-espertismo” que grassa na sociedade.

O triunvirato, controleiro, que nos veio pôr a mão em cima ocupou, afinal, o espaço que o nosso desleixo e a nossa apatia de longa data lhe proporcionaram. Um espaço político-ideológico, também, espaço em branco, que os políticos não souberam ocupar ou, então, quiseram voluntariamente conceder-lhe.

Longe vão os traços de um projecto social democrata para Portugal derrotado pelos neoliberais internos e do exterior. Contudo creio bem que é na ordem político-ideológica de uma renascida social-democracia que o país poderá encontrar um quadro de organização política e social adequado ao que somos como portugueses. E, sempre, sempre através de mais democracia, melhor democracia.

quarta-feira, 11 de maio de 2011

O PODER DOS NÃO ELEITOS

A questão fundamental que se nos impõe é se a dependência crescente das sociedades democráticas modernas face a entidades não eleitas apresenta, ou não, um novo perigo para a democracia.

A actividade e o poder de decisão da chamada “troika”, que acompanhou e deliberou recentemente sobre múltiplos aspectos do nosso futuro como sociedade que pretende ser livre e democrática, coloca-nos a questão da falta de democracia de muitas organizações internacionais neste tempo de globalismo.


Entidades não eleitas, tais como bancos centrais pretensamente independentes, reguladores económicos, agências de notação financeira, gestores de risco e auditores, tornaram-se um fenómeno global. As democracias estão cada vez mais a recorrer a estas entidades para demarcar os limites entre o mercado e o Estado, para resolver conflitos de interesses e para atribuir recursos, mesmo em áreas eticamente delicadas como aquelas que envolvem a privacidade e a biotecnologia.


Ponto é saber se tal não coloca a democracia em perigo.


Nas democracias modernas, as entidades não eleitas tomam muitas das decisões políticas que afectam a vida das pessoas, resolvem conflitos cruciais de interesses para a sociedade, solucionam disputas acerca da atribuição de recursos e fazem, até, mesmo, julgamentos éticos em algumas áreas delicadas. Por oposição, os políticos eleitos parecem, muitas vezes, mal preparados para lidar com a complexidade dos temas políticos.


A emergência dos poderes não eleitos está a espalhar-se pelo mundo democrático. Tomam diferentes formas legais e nomes diversos sendo que a variedade de formas e a terminologia oculta o crescimento da sua importância.


A questão fundamental que se nos impõe é se a dependência crescente, das sociedades democráticas modernas, face a entidades não eleitas apresenta, ou não, um novo perigo para a democracia. (cfr. Frank Vibert, The rise of the Unelected, Democracy and the New Separation of Powers, Cambridge University Press, 2007).


Vejamos o caso português em 2011. O pacote de medidas que o FMI, o Banco Central Europeu e a Comissão Europeia impuseram ao país vai exigir uma profunda remodelação da organização do Estado e afectará extensa e dramaticamente a vida de muitos cidadãos. Já antes o mesmo decorreu dos pronunciamentos das agências internacionais de rating do que todos conhecemos as consequências. Neste âmbito é de sublinhar – e desejar sucesso – à queixa apresentada por um grupo de cidadãos à Procuradoria Geral da República contra tais agências no sentido de as responsabilizar por, porventura, além do mais, favorecerem a especulação financeira e lucrarem, depois, com esta. A questão, porém, permanece: e a democracia poderá sobreviver a esta invasão de poderes não eleitos (não democráticos, diria) por um país adentro?


A análise desta problemática implica com a noção de democracia, uma ideologia e um regime político de difícil e complexa caracterização. Sem negar a sua ambiguidade e ambivalência, é seguro que a democracia tem a ver com a protecção dos direitos individuais face ao Estado (corrente anglo-saxónica) e com o governo da maioria, da vontade geral (Rousseau). Tudo isto é nada, porém, face aqueles sobreditos poderes e à sua acção concreta. Parece legitimo falar, pois, em suspensão da democracia neste tempo português, e nem as eleições, que se avizinham, mudam algo a este cenário. Como disse uma voz sarcástica da política portuguesa “quem paga é que manda” ao que acrescentaria, por minha parte, que votar é, neste transe, uma atitude ilusória perante o quadro de imposições que já pesam sobre o país.


Votar para quê? Votar para escolher o quê? Votar para mudar o quê?


Seria útil que todos nos detivéssemos na análise da situação vigente no país e nas alternativas que existem para tomarmos em mãos o nosso futuro sem qualquer tutela.


Costuma dizer-se que “quem não tem dinheiro, não tem vícios”. A democracia não é, porém, um vício, mas, antes, um modo de se ser pessoa, ou o único, mesmo. Quando ela se vai, ou se suspende, com ela esvai-se a honra, a dignidade e a solidariedade nacional.


Triste vão os tempos.

sexta-feira, 6 de maio de 2011

O ENIGMA DO TRABALHO

Uma empresa sem trabalhadores, substituídos por máquinas, é, decerto, bem mais lucrativa para os seus donos. Mas é por aí que passa o fim de uma civilização.

O que vou contar aconteceu-me há dias e não me chegou por interposta pessoa – sou, pois, testemunha directa. E o que contextualiza este retrato é que merece alguma reflexão crítica, porventura no sentido da argumentação a favor de um outro paradigma económico diferente daquele em que vivemos.


Que aconteceu? Na singeleza dos factos começou com uma avaria no meu sistema de recepção de televisão por satélite. Daí que tenha marcado o número da ZON que pretensamente me poderia ajudar. Ora, após ter seguido os vários procedimentos que me eram sucessivamente ditados mecanicamente por uma voz ausente e não dialogante, alguns minutos mais tarde essa voz de plástico disse-me finalmente que estavam muito ocupados na altura e que mais tarde seria contactado. Tive que me conformar aos ditames da máquina pois não havia alternativa. Cerca de doze horas passadas a máquina, então, lembrou-se de mim, ligou-me e, obediente, voltei a cumprir os procedimentos que me eram determinados desse outro mundo. O que não podia adivinhar é que, concluída outra vez a “via-sacra” dos procedimentos – marque aqui, marque ali – a resposta final fosse, de novo, que estavam muito ocupados… e que ligasse mais tarde.


O sistema da televisão contínua obviamente avariado. A ZON enlouqueceu!


Ora é desta loucura, comum a tantas outras situações empresariais, que é preciso cuidar.


As novas tecnologias e as inovações organizacionais que, sem ter em conta o direito humano ao trabalho decente, prescindem de pessoas (trabalhadores) em busca de mais lucro através da máquina estão a destruir as sociedades capitalistas, a sua economia e, sobretudo, as relações do homem com o trabalho a um ritmo de verdadeira calamidade. De um lado assiste-se ao aumento do desemprego e, por outro, à precarização do emprego existente, sem falar, já, da não criação de empregos novos. E, por vista disto, é previsível o desastre económico e social que se aproxima mas a que não se dá a devida atenção (ver, a propósito, David Harny, O Enigma do Capital, - sobretudo p. 72 ss).


Uma empresa sem trabalhadores, substituídos por máquinas, é, decerto, bem mais lucrativa para os seus donos. Não tem, desde logo, os inerentes encargos para a Segurança Social e outras alcavalas que as leis laborais e sociais impõem às que tenham trabalhadores ao seu serviço. Por isso vale a pena pôr a máquina no lugar do homem. Mas é por aí que passa o fim de uma civilização, também.


Agora que se está perante uma crise profunda, seria, pois, de pensar em criar mecanismos legais que, com justiça, obrigassem essas empresas de capital intensivo a pagar o devido à Segurança Social como se tivessem trabalhadores ao seu serviço, assim se criando condições para impedir, designadamente, esse brutal aniquilamento do mundo do trabalho e do cortejo de desgraças que vem atrás.


O lugar do trabalho nas nossas sociedades é decisivo para todos. Bastará ver, na verdade, a angústia das pessoas a quem falta ou que perdem o emprego para medir-se tal importância. O trabalho não se reduz a um mercado; é mais, ou vai além (é diverso) de um objecto de partilha. Inscreve-se no tempo e no espaço de uma vida. Numa perspectiva religiosa, católica, João Paulo II, já afirmara que “A Igreja está convencida de que o trabalho constitui uma dimensão fundamental da existência do homem sobre a terra. Confirma-a nesta convicção a consideração de todo o património das múltiplas ciências centralizadas no homem: a antropologia, a paleontologia, a história, a sociologia, a psicologia, etc. Todas elas parecem testemunhar de modo irrefutável essa realidade (…)” acrescentando “(…) mediante o trabalho, o homem não somente transforma a natureza, adaptando-a às suas próprias necessidades, mas realiza-se também a si mesmo como homem e até, em certo sentido, se torna mais homem.”


Desafia-nos, por tudo isto, uma outra perspetiva sobre a relação do homem com o trabalho no novo mundo que temos de construir. E, agora que tudo parece ter voltado ao princípio, neste tempo de crise e de sacrifício, seria grave esquecer a pessoa do trabalhador na sociedade que aí vem.


Há que reflectir. E agir depressa.