quarta-feira, 24 de fevereiro de 2010

Portugal já não é um Estado de Direito?


Há ocasiões em que se ultrapassam os limites do que é tolerável pondo-se em risco valores democráticos imprescindíveis a uma vida colectiva decente.

O conflito ideológico está no coração da democracia e o confronto ideológico é o sangue que lhe dá vida. O estatuto político, moral, ético e cívico dos protagonistas, por seu turno, marca a diferença entre a chicana dos medíocres e a luta dos que cultivam a honra e o perigo da dedicação à vida pública.

As crises que Portugal atravessa têm raízes fundas no passado, agravadas por factos da actualidade e encontram, desgraçadamente, na nossa história, muitas, incontáveis, réplicas parecendo que o estado natural deste país é o de sobressalto crónico da coisa pública. Mas há ocasiões em que se ultrapassam os limites do que é tolerável pondo-se em risco valores democráticos imprescindíveis a uma vida colectiva decente.

Penso que é este o ponto da situação actual. Que já não estamos num Estado de Direito, diz um “asfixiado”; que não há liberdade de expressão gritam alguns alegremente; que o Primeiro-Ministro é mentiroso atira um comentador desabrido; que uma providência cautelar decretada por um Tribunal é o prenúncio do regresso da censura à comunicação social adivinham alguns. E múltiplos outros factos se avançam, de resto, que apontarão para estarmos próximos do grau zero da responsabilidade política.

Conflito meramente ideológico, ou confronto ideológico?

Conflito letal de interesses partidários?

Crise real do Estado de direito?

Enquanto continuam os pregões neste mercadejar, mais típico de feira da ladra do que de uma sadia disputa partidária, Portugal afunda-se na crise financeira, económica e social. Inconscientemente ou, porventura, por subtis interesses dos que, nos seus galhos de poder, esperam que quanto pior estiver o país, mais benefícios pessoais poderão vir a colher.
Políticos sem grandeza, magistrados politizados e uma corja de jornalistas sem ética profissional, avultaram uma vez mais no cenário do nosso espaço público e ofuscaram aqueles outros políticos, magistrados e jornalistas cujas vidas pessoais e profissionais são exemplos de independência, de liberdade e de inteligência.

Para bem compreender o momento actual, neste viver o curto prazo a qualquer preço em que se tornou o nosso quotidiano, seria conveniente que também viessem à luz do dia os interesses obscuros que comandam certas “marionetas”, o que pretendem alcançar e o que não querem perder, seja pessoal, seja corporativamente. Aí se descobririam, seguramente, muitos “heróis” que, afinal, têm pés de barro e cadastro bem marcado, a par de ambições egoístas sem limite algum.

O circo mediático que, cada vez mais, usurpa o poder dos seus legítimos titulares, e ora os serve ora os condiciona, é um mal democrático tanto quanto é essencial à democracia a liberdade de expressão em todas as suas vertentes. O problema que se nos apresenta aqui como decisivo tem a ver com o ressurgimento do político – indo, até, mesmo à invenção de novos paradigmas de acção politica.

É a fragilidade do poder político – do governo e das oposições – que, com efeito, viabiliza todos os abusos, ilicitudes e ilegalidades de alguns que usurpam funções e atravessam fronteiras proibidas em democracias sem qualquer pejo.

Como escreveu recentemente Manuel Maria Carrilho na esteira, de resto, de teses à muito defendidas por Pierre Rosanvallon, o voto serve para escolher os governantes, mas não basta para legitimar todas as suas acções.

A nossa democracia está refém de explicações do Primeiro-Ministro, mas precisa, também, que sejam esclarecidos certos interesses mercantilistas que estão por detrás de alguns fantoches que ocupam o palco público neste tempo.

quarta-feira, 10 de fevereiro de 2010

COMEMORAR A REPÚBLICA


Entre os valores maiores da República, mesmo que não sendo dela exclusivos, estão a Fraternidade, a Igualdade e a Liberdade. E é à sua luz que deverão ser analisados os grandes problemas e desafios actuais.

O que vamos comemorar nos diversos momentos em que, neste ano, se assinala o centenário da República?
A pergunta parece encontrar justificação, desde logo, na medida em que já flui uma notória discordância, entre os políticos, sobre o assunto enraizada em disputas ideológicas e doutrinárias antigas, mas persistentes.
Ora, se é certo que, de muitos sítios, se poderá abordar a República, há que a perspectivar por inteiro não se limitando, desde logo, a festança aos aspectos positivos da I República. Porque nesta, instaurada em 1910, houve também aspectos negativos que, hoje, não se poderão mais escamotear, sendo que, também, foi republicano o regime que se lhe seguiu, de 1926 a 1974, e onde nem tudo foi mau, no contexto de então. E em República continuamos hoje.
Republicano convicto – declaro-o para que, desde já, fiquem claros os pontos de vista que irei invocar – defendo o regime republicano por uma razão que tenho por iniludível: só ele permite, face à Monarquia, que qualquer cidadão (do mais ilustre intelectual ao simples metalúrgico) possa, em tese, ser eleito supremo magistrado da nação. E nisto reside um pilar decisivo da democracia política. De qualquer modo entendo que a democracia não deveria impedir, em caso algum, que os cidadãos possam, em dado momento, escolher viver em Monarquia.
Posto isto, é minha opinião que a República que queremos comemorar está para além de qualquer regime republicano concreto, ou seja, deve ser vista e compreendida nos seus valores estruturantes essenciais. E estes, forjados, decerto, num específico tempo histórico, não são estáticos, antes dinâmicos, exigindo respostas novas, sempre urgentes, ainda que, tantas vezes, para já velhas e gastas perguntas.
Entre os valores maiores da República, mesmo que não sendo dela exclusivos, estão a Fraternidade, a Igualdade e a Liberdade. E é à sua luz que deverão ser analisados os grandes problemas e desafios actuais.
A Fraternidade que é muito mais do que a simples solidariedade social, ou um qualquer sistema assistencialista estatal. A Igualdade que não é igualitarismo, mas reconhece o mérito. A Liberdade como expressão mais nobre da Justiça entre os homens.
Nos primeiros eventos comemorativos do centenário da República, no Porto, onde em 31 de Janeiro de 1891 eclodiu um primeiro grito de rua favorável ao regime que viria, em 1910, a ser institucionalizado, os principais responsáveis do actual regime tiveram por preocupação maior apelar à unidade dos portugueses, à mobilização das vontades e à convergência política neste tempo crítico por que passamos. Invocaram, a propósito, a necessidade de um novo espírito de cidadania, o amor à Pátria e necessidade de ética na vida pública. Cumpre, porém, assinalar que estes votos, e a sua desejável concretização, são transversais a qualquer regime democrático e não definem o republicanismo.
É por isso que, havendo ainda um ano de comemorações pela frente, bom seria, também, dar a palavra à História e esclarecer, junto da opinião pública, os conflitos que flagelaram todo o tempo republicano tanto quanto os momentos altos que o coroaram. E retirar, daí, lições para o presente e, sobretudo, o futuro.
A República não se confunde com a democracia, mas só em democracia se poderá vivenciar plenamente. Revisitar os valores especificamente republicanos é, pois, tarefa essencial. Controversa, decerto, mas que valerá certamente todo o nosso empenho no mundo complexo e na sociedade de risco em que vivemos. Para não se repetirem erros grosseiros mas, sobretudo, para se aprofundar doutrinariamente o sentido e o alcance do regime republicano

quarta-feira, 3 de fevereiro de 2010

A JUSTIÇA A QUE TEMOS DIREITO


A questão essencial é do domínio da política e é aí que terá de encontrar soluções globais e concretas.

O tempo em que vivemos está minado por dificuldades várias mas, simultaneamente, é um tempo pleno de desafios e em que novos horizontes, e melhores que os presentes, são possíveis. E, como escreveu recentemente Vitorino Magalhães Godinho (Os problemas de Portugal, Colibri, 2009) “Nestas circunstâncias adversas, será bom que ressurjam as inquietações, e não se desista de reflectir na pergunta inevitável: que rumo para Portugal?”

A propósito da abertura do novo ano judicial, que recentemente ocorreu, justificar-se-ão, talvez, algumas reflexões ou inquietações enquanto aí se renovou o debate sobre certas questões do nosso sistema jurídico e judiciário atulhado de entorses, muitas delas derivadas de pressões dos poderes económicos e corporativos insaciáveis que nos rodeiam por todo o lado.

Aqui, como noutros espaços da vida pública, mais do que maldizer, ou dizer sempre os mesmos estereótipos, é preciso focar toda a nossa energia na busca de soluções para os reais problemas da justiça. E, decerto, tentar perceber onde radicam os conflitos de interesses que potenciam o mal estar.

Que rumo para a justiça?

Enquanto servidor do direito, nomeadamente como advogado há mais de 30 anos, de algum modo me será permitido, certamente, testemunhar inquietações diversas no desejo de ver superadas as dificuldades do tempo presente. Em geral – adianto-o desde já – não condeno aos infernos o nosso sistema de justiça, mas critico-o severamente na convicção, que é a minha, de que pode e deve ser melhorado. Sofre, afinal, de esclerose múltipla, mas pode sobreviver com o mínimo de dignidade se dele se cuidar.

O pior mal a assacar ao nosso sistema de justiça é, hoje, o de que tarda excessivamente a dar resposta às angústias dos cidadãos e das empresas. Tal corrói valores essenciais do Direito, nomeadamente a segurança através do Direito, a segurança do Direito e a estabilidade das situações jurídicas. Ora a segurança, como um fim do Direito, quando falha deixa os homens e os seus bens desprotegidos e, logo, à mão dos mais poderosos, dos mais fortes ou dos mais “espertos”. Precisamos, todos, de saber na verdade quais os efeitos de determinados comportamentos futuros para planear a vida, tanto quanto de sentir que o Estado não deixa na impunidade a violação das leis e num tempo justo e razoável.

É claro que, a montante fica o problema da feitura das leis, tantas vezes marcadas pela imperfeição e ignorância dos legisladores se não, mesmo, por maliciosos interesses de classe ou corporativos e ideológicos indiferentes à nossa situação real e aos nossos verdadeiros interesses colectivos. E a jusante, um outro, também relevante, que é o de habilitar, no âmbito do Estado de direito, o poder judicial com os meios necessários ao exercício das suas competências em tempo e com eficácia.

Pelo meio caberá referenciar a necessidade de simplificar as leis, sistematizá-las, e evitar a disseminação de normas jurídicas em caudais de sobreposição e incoerência sucessivos. E, também, a urgência de melhor formar todos os agentes da justiça numa sociedade de risco acrescido, volátil e cada vez mais complexa.

O Direito é, de certo modo, o reflexo da nossa sociedade e, mudando esta, aquele não poderá deixar de se adaptar aos nossos contextos sociais. Mas o Direito tem, também, a missão de guiar, organizar, reger a sociedade numa perspectiva de reforma social.

Afinal é a organização da vida em sociedade que também aqui está em causa. E as patologias sociais não deixam de ter repercussão na realização histórica e normativa do Direito.

O que vale por dizer que a questão essencial é do domínio da política e é aí que terá de encontrar soluções globais e concretas.